Já fui nostálgica. Bem apegada ao passado, iludida com os filtros que eu mesma colocava naquele tempo que vivi e acreditei ser inesquecível. Amadureci, e enquanto a ficha caía, fui percebendo que a mente nos prega peças, tem o costume de filtrar os acontecimentos e reter na peneira os detalhes bonitos, enquanto deixa escoar para o ralo todos os perrengues, dificuldades, sufocos e tristezas. Estratégia sábia, ainda mais se você é uma pessoa que não se vitimiza nem se apega à mágoas; que não fica remoendo arrependimentos, remorsos e tristezas antigas. Então só restam as boas lembranças, e parece normal acreditar que “naquele tempo” tudo funcionava melhor, a gente era mais feliz, a vida fluía perfeitamente.
Quem nunca teve adoração por aquele tio distante, que só vinha de vez em quando e enchia a casa de doces e figurinhas? Ele parecia perfeito, pois não estava ali todo dia, não era o trivial, o famoso “feijão com arroz”, e por isso sua presença parecia mágica. Faz parte da nossa humanidade valorizar tudo aquilo que é raro, escasso, atípico, menos disponível, inconstante e eventual.
Nada atenua a dívida de uma saudade. Ela cobra cada detalhe que parecia ser insignificante, explora cada dor que parecia curada, esmiúça toda circunstância que poderia ter sido e não foi, cutuca toda casquinha de machucado que parecia cicatrizado, vasculha cada miudeza teve significado.
A saudade me tirou para dançar e eu fui. Deixei que ela me conduzisse e ditasse o ritmo. Ela me levou pra perto de minhas faltas, ausências, frustrações. Desenterrou histórias antigas, trouxe à tona sentimentos vencidos, desalojou certezas e bagunçou seguranças. Não gostei da dança. Da próxima vez vou deixar quieto, baixar o volume da música e quem sabe dormir um pouco, pra ver se a danada me esquece.
Porém, não é porque a saudade te tirou para dançar que você tem que aceitar. A saudade não pede licença, não quer saber se você teve um dia difícil, se está com fome ou sede. Ela simplesmente chega e te chama para bailar. Mas você não é obrigado a ir. Não deixe que uma dança coloque a perder tudo o que você fez para esquecer.
Você pode simplesmente deixar que ela aumente o som, baile sozinha na proximidade do seu peito, traga lembranças que você jurou ter esquecido. Porém, não é porque a saudade se aproximou que você tem que sair dançando com ela. Se segure, não procure, se proteja de si mesmo. Vá conversar com um amigo, resolver o sono atrasado, atualizar aquela playlist animada. Mas não deixe que ela te conduza para um lugar que você sabe que vai te machucar.
A saudade vem em ondas; suave num momento, muito forte em outro, quase imperceptível numa manhã de sol, arrasadora numa tarde de chuva. Deixe que ela venha, e abra caminho para que ela passe. Não ceda ao impulso de vasculhar, stalkear, mandar mensagem. Apenas abra caminho e deixe que ela passe.
A saudade é um lugar de faltas, incertezas, carências, impossibilidades e mal resolvidos. É por isso que a gente tromba tanto nela. Mas não é porque está doendo agora que você tem que ceder, e colocar tudo a perder. Essa dor vai passar, e se você não retroceder, vai chegar um dia em que ela vai ser só uma lembrança distante, uma dança que você recusou, um teste difícil que você passou.