A melhor fatia

Qualquer um que já tenha comemorado o próprio aniversário – em festinhas caseiras, no trabalho, na escola ou mesmo num boteco – provavelmente experimentou ser olhado com expectativa-ansiosa-ambiciosa-voraz por aqueles que acabaram de cantar o “parabéns”, ávidos-desejosos-sedentos-cobiçosos pela concretização do gesto de oferecer e receber o primeiro pedaço. Diplomáticos costumam oferecer a primeira fatia para os mais velhos; conciliadores, para os impacientes e carentes; apaixonados, para o alvo de sua atração; crianças, para a mãe; desligados, para qualquer um.

O fato é que a primeira fatia, na maioria das vezes, simboliza uma preferência – espontânea ou forçada – mas, ainda assim, um privilégio concedido a alguém especial.

Porém, nem sempre o primeiro pedaço é a melhor fatia. Normalmente, a melhor fatia fica na esquina, onde o bolo faz a curva e há fartura de mashmallow, glacê, cobertura trufada, doce-de-leite, chantilly, brigadeiro, confetes ou seja-lá-o-que-for. Esperar pelo momento exato em que o anfitrião irá cortar essa fatia é questão de educação, ar blasè e sangue frio. Ademais, quando essa fatia é cortada e há uma cereja ou raspa de chocolate meio amargo para coroar, é o clímax dos “clímaxes” – pra saborear de olhos fechados, respirando fundo.

Quem já experimentou a sensação de comer a melhor fatia do bolo preferido, num dia em que suas papilas gustativas suplicavam por algo doce e não havia necessidade de dieta, sabe do que estou falando. Quem já ofereceu a melhor fatia, para o apreciador mais sedento por ela, também. Receber, então, a melhor fatia – no dia mais propício, da pessoa mais especial, que teve a delicadeza de nos oferecer o melhor pedaço, nos priorizando entre tantos – é o auge da felicidade.

Como a melhor fatia de bolo oferecida prioritariamente a alguém, cada um guarda o melhor de si – o recheio mais encorpado, a cobertura mais açucarada, a cereja ou a raspa de chocolate amargo mais saborosa – para a pessoa que acha que merece. Porém, muitas vezes reservamos a melhor fatia de nós mesmos para quem nunca nos oferecerá algo similar em troca.

Guardamos o melhor de nós para quem queremos guardar. Reservamos nosso lado mais gentil, acolhedor, amoroso e recíproco para quem desejamos reservar. Muitas vezes, porém, desperdiçamos nossa melhor fatia com quem não saberá apreciar. Outras vezes, esperamos receber o melhor pedaço de quem não tem a intenção de compartilhar.

No início, algumas pessoas nos oferecem a melhor fatia, com os ingredientes mais bem selecionados e uma explosão de cores e aromas. Você se deslumbra, e aos poucos se acostuma com a textura aerada ou folhada, com o toque sutil de canela ou noz moscada, com a magia da baba-de-moça tão bem elaborada. Aos poucos, porém, percebe que o recheio não está tão fresco – muitas vezes chega vencido – e falta granulado no seu brigadeiro. O doce de leite com ameixa parece mais água com açúcar e caroço, e você se pergunta onde foi parar o sabor, a qualidade e o requinte que um dia lhe foram destinados e hoje não mais.

Algumas pessoas conseguem manter a qualidade, o sabor e a textura mesmo que tenham que dividir a torta em inúmeros pedaços. Outras, porém, só conseguem oferecer algo primoroso e requintado – claras em neve batidas à exaustão – a um alvo de cada vez. Há quem ofereça diversos pedacinhos, muita quantidade, sem nenhuma qualidade, às mais variadas pessoas. E existe quem demora para oferecer uma fatia, mas quando oferece… ah… é uma explosão de ganaches, trufas, glacês, chantillys, pudins, churros, avelãs e o que mais se desejar.

Se você tem reservado a melhor fatia de si mesmo para alguém específico – esperando receber em troca um pedaço de qualidade similar ou superior – e só está ganhando uns farelos xoxos de um bolinho de fubá seco, sem graça e sem erva doce, cuidado. Algumas pessoas não merecem nem o granulado do nosso brigadeiro.

Talvez seja hora de aprender a reservar a melhor fatia a você mesmo. E, caso sobre algum pedaço, você decidirá dividi-lo ou não com alguém, sem a gana de esperar uma mísera cereja em troca. Se você dá a si mesmo o melhor, o que virá depois será apenas acréscimo, um toque a mais, um agrado que você poderá aceitar ou não.

E agora me recordo de uma das cenas cinematográficas mais lindas que representam comida: a difícil escolha de Patrick “Patsy” Goldberg, no filme “Era uma vez na América” (“Once Upon a Time in America”). Para quem não assistiu, o menino – que transita entre a infância e adolescência – compra uma fatia de torta de charlotte russe com chantilly para a prostituta Peggy, uma adolescente que troca favores sexuais por doces.

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COMPRAR UM BOLO DE 5 CENTAVOS ERA UMA LOUCURA PARA UM JOVEM DO BRONX NA DÉCADA DE 1920.

Porém, enquanto aguarda ser atendido por ela, Patrick se vê frente a frente com o pedaço de bolo. Resistir ao doce parece ser mais difícil que resistir aos encantos da prostituta, e por isso ele luta contra o instinto de abrir o pacote da confeitaria. No início, ele abre só um pouquinho. Enfia o dedo na montanha de chantilly e prova a cobertura. Aos poucos, porém, junto da trilha sonora que segue melancólica, quase de partir o coração, o tormento do menino cresce. Ele fecha o pacote, depois abre novamente, tira a cobertura de cereja, coloca-o novamente. Entre a fome e o desejo sexual ou, entre a ingenuidade do menino e a força do adulto, vence a fome. E assim, depois de resistir por um longo tempo, ele ataca o bolo de uma vez só, engole tudo impetuosamente, sem parar.

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a prostituta Peggy nunca receberá o bolo

O filme é um clássico que merece ser revisitado sempre. E essa cena em particular é, na minha opinião, uma das melhores do cinema.

Para quem você guarda a melhor fatia de si mesmo? Quem tem o melhor recheio, a melhor cobertura, a raspa de chocolate amargo? Você conseguiria dar fatias de qualidade para diversas pessoas? Ou separa as melhores fatias para um grupo seleto; quem sabe uma só pessoa em particular? E, afinal, o que você guarda para si mesmo?



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Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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