O romance “A vida mentirosa dos Adultos”, de Elena Ferrante, começa com a frase: “Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia”. Quem narra a história é Giovanna, uma menina de 13 anos que, em meio às terríveis transformações da adolescência, ouve a “sentença” às escondidas e, a partir daí, sente-se à beira de um abismo. Porém, se por um lado o episódio assinala algo semelhante a um desmoronamento, ele também marca o início de uma jornada de autodescobertas e amadurecimento.
Ao longo do livro, acompanhamos a busca de Giovanna por sua tia Vittória, irmã do pai – a quem foi comparada não somente na feiura estética mas também na falha de caráter – e o encontro com essa parente tão complexa e fascinante.
A jornada de Giovanna em “A vida mentirosa dos adultos” me fez refletir sobre a célebre frase do cantor, compositor e poeta Leonard Cohen (1934-2016): “Há uma rachadura em tudo – é assim que a luz entra”
Nem sempre a vida será contada da forma que imaginamos. Aliás, muito mais vezes do que gostaríamos, o chão se abre, as paredes racham, a chuva invade os cômodos por frestas no telhado. Porém, são essas mesmas rachaduras que permitem que a luz entre e a gente consiga enxergar a vida e as coisas de uma forma totalmente nova. Ou nos conduzem a uma jornada que jamais teria sido iniciada se não tivessem ocorrido rupturas.
É preciso criar laços com nossas inadequações, respeitar nossas lágrimas, abraçar nossas contradições. Sem medo de que a vida nos machuque. Porque a vida vai nos machucar de vez em quando, até naqueles momentos que a gente imaginou perfeitos. E está tudo bem.
Regras, roteiros, calendários e planos existem para nos ajudar a nos organizar, mas a vida em si é muito maior que isso, e pode mudar num piscar de olhos. E é bom que mude, que nos desoriente por algum tempo, balance nossas convicções e dê uma sacudida em nossos conceitos para que nunca nos esqueçamos que o que nos faz crescer é o inesperado. Sempre é.
Não defendo a dor nem os conflitos, mas abraço a sabedoria de Rubem Alves na reflexão “Ostra feliz não faz pérola” ou na frase: “Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca para sempre. Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira”
Às vezes lamentamos a dor, as rupturas, despedidas e falhas. Mas são elas que possibilitam a entrada da criatividade, poesia e arte. O mesmo fogo que queima e causa sofrimento é o fogo que transforma o grão de milho em pipoca. Então não remoa mágoas e delete tudo que te faz mal, mas aceite que é impossível controlar a dança dos dias e das horas. A vida nos invade, fere, alegra, queima, arde… e, finalmente, nos transforma.