A armadilha da romantização do passado

Outro dia assisti a uma palestra do filósofo Mario Sergio Cortella em que ele dizia: “Quando você dirige um carro, você já notou e eu também, que um carro tem retrovisor e para-brisa. Mas o retrovisor é menor do que o para-brisa, porque passado é referência, não é direção”. E de repente me vi com desejos de renovação, tentando ao máximo me desvencilhar da armadilha da romantização, principalmente da romantização do passado.

Temos a tendência de imaginar que no passado as coisas eram melhores, mais fáceis e mais valiosas, quando na realidade estamos enxergando pelo filtro da nostalgia, um filtro que peneira os infortúnios e dificuldades experienciados e só traz à tona uma saudade dolorosa que não nos permite prosseguir com alegria ou gratidão pelo momento presente.

Romantizar o passado é acreditar que o momento presente nunca chegará aos pés daquilo que já foi vivido numa época que não existe mais. É criar a ilusão de que o tempo que ficou pra trás carregava uma perfeição e um encanto que jamais serão superados. É se agarrar à ideia de que “naquele tempo” havia uma excelência e um primor que nunca se repetirá. É colocar filtros e lentes na realidade transcorrida, como se ela não flertasse com a imperfeição e com as dificuldades, comuns em qualquer época. É deixar de valorizar o presente para se agarrar a um sentimento de melancólica saudade, que não nos ajuda a crescer nem amadurecer, mas, ao contrário, nos imobiliza.

Precisamos parar com essa mania de tratar o passado como um precioso souvenir que tem lugar especial na estante da sala e é admirado continuamente com melancólica nostalgia. O passado teve sua importância, mas precisa ficar dentro dos álbuns de retratos e no fundo das gavetas, senão a vida não flui. Se colocamos o passado num pedestal, acreditando que somente ali éramos felizes, perdemos a capacidade de nos alegrarmos com a vida e, principalmente, a aptidão de simplesmente apreciarmos a paisagem.

Tenho uma prima muito querida que outro dia escreveu no Instagram: “Eu acredito na alegria como potência, como resistência, como uma forma corajosa de estar na vida”. Tenho pensado demais sobre essa frase desde então. Pois pode ser mais fácil e cômodo flertar com o passado e viver uma vida saudosa e melancólica que arriscar assumir a alegria e a gratidão como metas diárias de vida. É preciso coragem para romper com a ilusão de uma felicidade distante que reside no passado e assumir o encontro com as alegrias miúdas que brotam no solo árido do dia a dia.

Talvez a melhor maneira de superar o passado, com todas as armadilhas de perfeição que ele traz, seja encarando a importância que ele teve como terra fértil para que você se tornasse quem você é. Valorize, entenda, aceite, enxergue. Mas depois, rompa com a romantização. Desencante, desiluda, escancare os defeitos e as dificuldades vividas e perceba, com orgulhosa satisfação, que somos momentos, e que não há nada mais reconfortante e satisfatório que a certeza de que fizemos a escolha certa, e de que estamos no lugar que deveríamos estar.

*Imagem de capa: Divulgação Filme “Blue Jay”

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Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

2 COMENTÁRIOS

  1. “e que não há nada mais reconfortante e satisfatório que a certeza de que fizemos a escolha certa, e de que estamos no lugar que deveríamos estar”. Perfeito.

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