Espia o tempo

Não conte para ninguém. Mas, desconfio que o tempo corre quando não estamos vendo. O relógio nos engana num tic-tac hipnotizante. Enquanto o ouvimos, lerdo e vagaroso, a água ferve, o leite derrama e as pessoas dormem crianças, mas acordam velhas.

Alheio aos dias do calendário, o sol se põe antes de piscarmos e as flores murcham, cinco minutos depois de florirem.

Os seus dedos não percebem. Os seus olhos não acompanham. Mas, há um bichinho invisível roendo tudo o tempo todo. Aqui e agora. Silencioso. Desbotando as cores do seu vestido preferido, desfiando as meias, roubando o brilho das fotografias e enegrecendo as pratarias.

Enchendo seu coração de certezas e dúvidas permanentes, os cabelos de cor branca ou de tinta espessa, seus filhos de palavras, seus diários de histórias, sua vida de sorrisos e lágrimas.

Caminhando em torno da casa, com a velocidade ainda desconhecida de uma luz, o tempo gasta e desgasta num círculo infinito. Fazendo velho o que acaba de nascer. Descobrindo sempre e diariamente aquilo que já foi sabido por outro alguém. Reduzindo todo amor, mágoa ou raiva, a um nome arquivado. Rememorado, com sorte, pelos seus bisnetos.

Mas, eu apenas desconfio. E enquanto não tenho certeza, mais de trinta anos se passaram em uma tempestade de areia que consumiu meus sapatos de número 18, meus dentes de leite, a escrivaninha de mogno, o portão de ferro que rangia, o cachorro peludo e branco, as garrafas quebradas no bar da esquina, a camisola amarela com um desenho de meia lua e a avó rechonchuda que sempre dizia: “Espia!”.

É o tempo levando…levando…levando…

Imagem de capa: Min C. Chiu, Shutterstock



LIVRO NOVO



Cris Mendonça é uma jornalista mineira que escreve há 14 anos na internet. Seus textos falam sobre afeto, comportamento e Literatura de uma forma gostosa, como quem ganha abraço de vó! Cris é também autora do livro de crônicas "Mineiros não dizem eu te amo".

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