Assistindo a uma aula do curso que iniciei esse ano, que foi a Graduação em Filosofia, fui colocado em contato com uma poesia absolutamente maravilhosa. Curta em palavras, mas profunda em reflexões.
Era uma poesia de autoria do mestre Fernando Pessoa intitulada “Gato que brincas na rua”. Quero junto com você pensar um pouco sobre as muitas interpretações contidas em 12 pequenas linhas. Veja só!
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Gato que brincas na rua
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Fernando Pessoa
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São apenas 12 versos e 3 estrofes, nas quais ele aborda temas existencialistas com maestria. Na 1ª estrofe ele fala sobre a “sorte” do gato, que ele chama de “sorte” por talvez não conseguir encaixar outra palavra.
Ele está falando que o gato vive de forma tão plena o momento presente que chega a sentir inveja. Inclusive nós somos tão centrados em nosso próprio umbigo que muitas vezes associamos esse estado de plenitude deles com felicidade.
Será que é felicidade esse estado vivido pelo gato? Ou será que posso chamar esse estado de “gaticidade”? Essa “gaticidade” seria a felicidade do gato em ser gato e viver da forma que vive.
Sorte não é a palavra que expõe o que o poeta quis dizer pelo simples motivo de associarmos sorte com algo meio que sobrenatural. E será que existe algo sobrenatural em um gato? Muitos diriam até que sim! Mas o que seria?
A sorte, na nossa limitada concepção, é como se fosse uma espécie de benção, ventura, afortunamento de certos indivíduos considerados especiais. Por isso é comum dizermos: “Fulano de tal tem muita sorte…”. Só para termos ideia do quão limitada é nossa visão sobre isso! A forma mais comum de associação com a sorte é ganhar em loterias ou jogos de azar. Talvez até por isso que recebam esse nome “jogos de azar”, porque somente alguns poucos privilegiados são os sortudos vencedores.
O gato não se importa com nada disso. Enquanto estamos aqui conjecturando essas ideias, ele está sossegado, dormindo de barriga para cima.
Como se chama essa “sorte” do gato? Não consigo responder a essa pergunta! Você consegue? Coloque alguma sugestão nos comentários! Vai ser bacana estendermos essas questões…
Na 2ª estrofe ele fala sobre o destino não só do gato, mas de todos nós, a FINITUDE. Todos nós vamos morrer um dia! A grande diferença entre nós e o gato é que ele não tem consciência de sua finitude, no entanto, nós temos.
Por sermos racionais e termos essa consciência, procuramos dar algum sentido maior para a nossa existência, para que ela não seja um simples ato instintivo, tipo: comer, dormir, perpetuar a espécie…
Daí ele questiona que o gato sente só o que sente. Em outras palavras, o seu sentimento está ligado aos seus instintos fundamentais: fome, sede, sono, perpetuação da espécie etc. Mas nós somos muito diferentes, muito mesmo!
Os nossos sentimentos são tão diversificados e multifacetados que nem preciso ir muito longe para confirmar isso. Toda a Filosofia, a Psicologia, as Artes, e por que não acrescentar? Até a Ciência, está imbuída de sentimentos. Pode ser o anseio pela descoberta, no caso da Ciência, a busca pela expressão do belo na Arte, a alegria de entender as mazelas emocionais na Psicologia e o espanto, no caso da Filosofia.
No pouco tempo que estou nesse curso, aprendi que a palavra que melhor designa o sentimento para Filosofia é ESPANTO. Não dá para ser um filósofo sem se espantar com a existência e suas complexidades!
Eu me espantei sobremaneira com esse gato e não consegui sentir um pingo de sono até colocar essas ideias de forma escrita para compartilhar com você agora! Esse sentimento é parte da minha felicidade, que voltando ao gato, não tem nada a ver com o que ele sente, pois ele só pode sentir o que ele sente! Está conseguindo entender ou estou viajando demais?
A estrofe final é a mais complexa e bonita das três. Só com ela é possível escrever um livro inteiro com divagações ad infinitum…
O gato é feliz ao modo dele. Esse nada colocado pelo poeta provavelmente tem relação com o fato de o gato ter uma existência instintiva, e depois que ele morrer não fará falta para praticamente ninguém. Ele fará falta para o seu dono caso seja domesticado, ou no máximo para alguns poucos que tenham de alguma forma se afeiçoado a ele.
Nós não conseguimos conceber a ideia de vivermos nesse mundo sem deixarmos alguma marca, algo para a posteridade, ou seja, um LEGADO.
Não é à toa que existe a tão conhecida frase: “Ao longo da vida, plante uma árvore, escreva um livro ou tenha um filho”. E claro! Se puder, faça as três coisas!
Por que gostamos tanto dessa máxima? Exatamente porque dessas três maneiras nos tornamos eternos. Algo de nós ficará nesse mundo após nossa morte.
Qual é o legado do gato? Pode até existir, mas eu não consigo ver com clareza. Será que são os gatinhos que ele gerou? A alegria que deu ao seu dono?…
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Então ele conclui parafraseando o mestre Sócrates e sua máxima “Conhece-te a ti mesmo”. Ele ilustra com maestria nossa natureza dual. Estou em mim, mas não sou eu. Então quem sou? Se digo que sei quem sou, não sou mais eu que estou aqui…
É difícil compreender isso, mas vou tentar facilitar a sua vida com uma interpretação bacana.
Sabemos da máxima de Sócrates que diz: “Só sei que nada sei”. Ele não está dizendo que é um “burro”, muito pelo contrário! Está dizendo que tem muito conhecimento, mas não é detentor de todos os conhecimentos, que aquilo que sabe é como o nada frente a tudo o que pode ser conhecido, tanto fora, pelo conhecimento adquirido, quanto dentro, pelo que se sabe sobre si mesmo.
Então a frase final é um tratado sobre a HUMILDADE. Se eu já me conheço, a única certeza que eu tenho é de que não tenho mais nenhuma sanidade mental. Meu EU com letra maiúscula não está mais dentro de mim, então por isso que me vejo, mas não estou lá, “estou sem mim…”.
Portanto. Que esse lindo gato e todas essas reflexões existencialistas lhe ajudem a olhar para dentro de si mesmo com um olhar mais contemplativo, pegando o que de bom o gato pode ensinar, mas acima de tudo, aprendendo com essa sabedoria que tão bem o mestre Sócrates nos legou há 2500 anos…
Imagem de capa: Esin Deniz, Shutterstock