O encontro emocionante com a menina que fui um dia

Querida menina, eu precisei vir ao seu encontro. Tantos anos nos separam, não é mesmo? Hoje, sou uma mulher independente, sou vista como bem sucedida, alguém que venceu na vida. Conquistei e venho conquistando os meus objetivos. Mas, confesso, cada vez que alguém me parabeniza por algo, é você que me vem à lembrança, inevitavelmente. É como se eu tivesse recebendo os méritos que, na realidade, são seus. Me dou conta de que estou colhendo os frutos do seu plantio.

Quando alguém me chama de forte, sinto-me constrangida, como se eu fosse uma impostora. Não sou forte como as pessoas pensam. Comparada a você, sou frágil demais. Sabe por quê? Eu tenho recursos, você não tinha nada. Tudo o que você tinha era a cara e a coragem. Eu tenho um carro bacana para ir à faculdade, você ia à escola à pé, naquela distância toda.

A mulher aqui pode comprar os materiais didáticos que ela quiser, eu tenho um notebook super moderno. Você, ás vezes, tinha que usar um lápis partido ao meio, porque éramos oito irmãos e nosso pai era muito pobre. Lembro-me que você sonhava em ter uma caixa de lápis de cor, mesmo que fosse pequena, e nunca teve. Um dia desses, meu filho me disse que, todas as vezes que ele entra numa papelaria, você vem à mente dele. Ele disse que, se fosse possível, te daria uma coleção de lápis de cor, e tudo o mais que você desejou. Ele ficou muito comovido quando ouviu a sua história.

Eu tenho as roupas que eu gosto. Você, só tinha um vestido de chita para usar enquanto coubesse em seu corpo, era a sua roupa para todas as ocasiões: missa, festa, casamento, etc. E você era tão vaidosa, menina! Confesso que sinto um quê de remorso quando olho para os meus frascos de perfume. É que você nunca teve, sequer, uma colônia, nem xampus, nada disso. Mesmo assim, seus cabelos eram muito lindos.

Eu penso muito em você, minha guerreira! Lembro-me do dia em que saiu da sua casa deixando sua família e seu mundo, e veio à Brasília morar com a nossa tia Maria, para continuar estudando. Lembro-me de você chorando de saudades de casa, no banheiro, e lavando o rosto em seguida, para ninguém perceber. Sinceramente, a mulher de hoje não teria aquela força. Lembro-me da saudade que você sentia, aos domingos, relembrando as vezes em que ia do nosso sítio à Alvorada do Norte na garupa do cavalo Roxão com o nosso pai.

A saudade saía pelos poros… escorria pelos olhos. Saudades do rio Buriti, dos cachorros Volante e Tiziu, dos gatos, da liberdade, do mato, do cheiro de fumaça do fogão à lenha, dos berros das vacas no curral, do barulho da chuva no telhado cheio de goteiras. A saudade tornou-se sua companheira fiel na capital do Brasil.

Na cidade grande, tudo era diferente e desconhecido para você que, muitas vezes, pensou em desistir de tudo, mas, resistiu bravamente, agarrando-se com unhas e dentes ao sonho de ter um futuro melhor, que é, exatamente, o presente que vivo hoje. Tudo o que tenho e sou devo à sua determinação e à oportunidade que a tia Maria Magalhães de Brito deu para você continuar os estudos.

Inevitavelmente, quando me sinto desanimada e insegura, penso: “como eu queria ter a força daquela menina que fui um dia”.

Vejo você, com o nosso pai embaixo de um pé de manga, escrevendo cartas. Ah que cena linda! Você toda concentrada, sentindo-se poderosa por ter sido promovida à “escrevedora” de cartas do melhor pai do mundo, o “seu Nezim”.

Você sempre dava um jeito de achar uma brechinha para sonhar. Sei que muita gente zombou de você e dos seus sonhos e, que, por isso, tornou-se uma sonhadora silenciosa.

Lembro-me da sua mania de sempre olhar o nome do(a) autor(a) na capa dos livros. Então, você atribuía, àquele nome, um rosto, uma voz e uma personalidade. Isso começou com o nome da Branca Alves de Lima, na capa do primeiro livro que você teve na vida, a cartilha de alfabetização Caminho Suave.

De vez, em quando, você imaginava o seu nome na capa de algum livro, e chegava a sentir-se constrangida, como se não fosse digna daquele sonho. Mas, foi aprendendo, com os livros, que sonhar não é pecado. Então, guardou, numa gaveta da alma, o sonho de ser escritora.

Lembro-me também do seu encantamento na primeira vez em que teve contato com a psicologia. Foi quando uma psicóloga foi dar uma palestra na sua escola, quando você tinha 13 anos. Naquele dia, outro sonho nasceu. E, como não sabia o que fazer com um desejo que morava a anos luz da sua realidade, guardou as sementes dele em alguma gaveta da alma. Você tinha essa característica: fazia o que estava ao alcance e guardava as sementes daquilo que não podia realizar

Menina, me dê um abraço bem apertado, preciso dele. Eu trago surpresas para você. Eu descobri onde você guardou as sementes dos seus dois maiores sonhos. Eu as encontrei dentro da minha alma, e confesso que cheguei a duvidar que elas ainda germinassem, devido ao longo período em que ficaram guardadas. Apesar da dúvida, plantei-as e dediquei-me a regá-las com fé, otimismo e atitude. Elas reagiram de forma sobrenatural, elas nasceram, transformaram-se em mudas viçosas, com raízes fortes, e, para a minha grata surpresa, já estão frutificando.

Os seus sonhos de ser escritora e psicóloga se realizarão.O seu nome, menina, vai estar na capa de um livro em abril de 2018. E você será intitulada Psicóloga em dezembro de 2019. Eu devia isso a você, eu sempre desejei que sentisse orgulho da sua versão adulta. Eu sempre quis recompensá-la por tudo o que enfrentou. Ah, pode chorar à vontade, vamos chorar, juntas, abraçadas. Esse choro, merecemos chorar. É choro de contentamento e de gratidão. Perdoe-me pela demora, menina, só tive condições de me dedicar às suas sementes quando fiz 40 anos.

Imagem de capa: Esin Deniz, Shutterstock



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Sou uma mulher apaixonada por tudo o que seja relacionado ao universo da literatura, poesia e psicologia. Escrevo por qualquer motivo: amor, tristeza, entusiasmo, tédio etc. A escrita é minha porta voz mais fiel.

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