Imagem de capa: Olena Tur, Shutterstock
Este não é um texto sobre zumbis. Tampouco ousaria invadir, com inoportunas palavras, as histórias daqueles que lutam para manter a dignidade inteira, enquanto enfrentam enfermidades graves ou definitivas. É apenas uma singela, porém honesta, tentativa de refletir sobre uma alarmante epidemia, cuja consequência direta é a transformação de gente viva em fantoches animados, prontos para reagir ao menor movimento das cordinhas, pensas acima de suas confusas e entorpecidas cabeças.
É muito fácil acreditar em mentiras, sobretudo naquele tipo de mentira que nos permite o conforto de ficar boiando indefinidamente em águas mornas de acomodação. A nossa compleição humana, conta com um cérebro privilegiado. Estamos falando de 100 bilhões de neurônios do cérebro, ligados a 10 mil outros sendo assim capaz de receber 10 mil mensagens ao mesmo tempo. Partindo desse impressionante volume de informações, o neurônio tira uma única conclusão, que será partilhada com milhares de outras células. No entanto, nada é mais intrigante ou cheio de novas informações para serem decodificadas, compreendidas e assimiladas, do que o nosso próprio cérebro. Nossos conhecimentos acerca do nosso funcionamento neurológico assemelham-se a um bebê que acabou de descobrir que consegue ficar em pé sobre suas indecisas perninhas. E é justamente essa nossa ingênua e inicial compreensão de nós mesmos que nos faz presas extremamente fáceis dos sedutores entorpecentes de nossa força de vontade, coragem, curiosidade e determinação.
Vivemos ansiosos por alguma coisa, qualquer coisa, que nos garanta alcançar tudo o que queremos numa única dose, num simples botão para se apertar ou numa ideia mirabolante para revolucionar o mundo e que, de quebra, nos ajude a ganhar notoriedade, importância e poder. Até aí, nenhuma novidade, certo? Afinal, de alguma forma, é essa ambição cognitiva que movimenta a vida. A surpresa disso tudo fica por conta de que esquecemos com enorme facilidade o quanto o mundo à nossa volta se transforma rapidamente. Uma ideia que nesse minuto é inusitada e inovadora pode tornar-se obsoleta antes mesmo que tenhamos descoberto algum jeito de divulgá-la, caso ela seja “um fim em si mesma”. Ideias perenes são aquelas que, nascidas de um ser humano, encontram conexões nos mais diversos seres humanos ao redor do planeta. E, assim, ganham novas configurações, adaptam-se, transformam-se; ideias perenes são aquelas capazes de nos transformar antes que as coisas fiquem mais rápidas e sofisticadas e nos encontre despreparados para compreendê-las. Parece complicado. E é mesmo!
Quando começarmos a perceber o quanto estamos nos afastando da nossa natureza humana, obstinados pela contemplação estética da vida, teremos a chance de dar ao nosso destino um roteiro mais completo e consistente. Vivemos representando comédias românticas e sonhando com um reconhecimento pela nossa dramática atuação. Isso não vai dar certo! Para complicar um pouquinho mais a trama, somos tão infantilmente apaixonados por nossas próprias obras que nos tornamos incapazes de reconhecer o esforço contido nas obras alheias. Estamos sempre prontos para criticar; vivemos com o dedo em riste, e não nos damos conta do enorme abismo que estamos cavando entre nós e o nosso sonho. O nosso sonho é tão superficial e egoísta que corremos o risco de que, ao realizá-lo venhamos a ganhar como prêmio tão somente a solidão da vitória, num cume altíssimo onde cabe apenas uma pessoa.
A boa notícia (sim, há uma boa notícia!), é que não somos reféns indefesos de nossos bilhões de neurônios. Somos seres constituídos organicamente e forjados no convívio com os demais e na compreensão e acolhimento de nosso funcionamento psíquico. Aleluia! Porém, apesar de ser realmente uma boa notícia, ela nos tira PARA SEMPRE das águas mornas da acomodação. Ser feliz, ao contrário do que ingenuamente supomos, dá um bocado de trabalho.
O pai da Psicanálise, Sigmund Freud revelou em seus estudos publicados que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três vezes em seu narcisismo, ou seja, a belíssima e perfeita imagem que tínhamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a qual, durante séculos, estivemos encantados. Que feridas foram essas? A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro do mundo. A segunda foi causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a Natureza. A terceira foi causada por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica.
A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e apenas uma consciente: o id, o superego e o ego. Os dois primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente. O ego ou o eu é a consciência: pequena parte da vida psíquica, submetida aos desejos do id e à repressão do superego. Obedece ao princípio da realidade, ou seja, à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir as exigências do superego. O ego, diz Freud, é “um pobre coitado”, espremido entre três escravidões: os desejos insaciáveis do id; a severidade repressiva do superego e os perigos do mundo exterior. É desse conhecimento que podemos encontrar uma saída para nosso eterno dilema de coexistir no mundo com outros bilhões de nós. Necessitamos compreender-nos, a ponto de sermos capazes de equilibrar nossos egos, alimentando-os o suficiente e impondo a eles a observação dos princípios de coexistir.
Precisamos, com urgência, abandonar a ilusão de que alguém ou alguma coisa virá externamente nos garantir alegria, prazer ou realização. Não somos obras maravilhosas de ninguém. Somos seres imperfeitos, encantadoramente imperfeitos e permanentemente “em obras”, até o nosso último suspiro. Se quisermos experimentar a leveza do voo, precisamos aprender a cultivar a força das asas. Caso contrário, continuaremos a esbarrar uns nos outros por aí, a esmo, sem conexões. Seremos quase felizes, quase conscientes, quase humanos, quase vivos, pessoas engessadas. Uma vida inteira pede compromisso inteiro, lucidez e a determinação de olhar para dentro tantas vezes quantas forem necessárias, para começar a compreender o caos aqui fora e saber o que fazer com ele e com a beleza que existe nessa nossa permanente incompletude.