Imagem de capa: Christian Bertrand, Shutterstock
A cabeça gira confusa. Mais uma noite de amores desconhecidos. Amores? Não, amores não. Mais uma noite de louca procura pela satisfação da necessidade gritante de afeto. Bocas, olhos, olhares sorrisos, tudo misturado e borrado numa pintura caótica de fragilidade e falsa postura destemida. No espelho o reflexo de um rosto familiar. Alguém vagamente conhecido. Alguém que se contempla do outro lado. Saiu à procura de prazer e risos e voltou para casa em busca de uma paz que se perdeu no tempo. Faz tempo.
A sede desesperada pela alegria cegou a razão. A euforia do corpo na dança; da boca no copo, no outro corpo, na outra boca. Sumiu no ar, volátil, volúvel. A pele macia que esperava o toque, agora arde pela dor de ter se ferido na ilusão da alegria insana. Está de volta à reflexão solitária sobre seus desejos irresponsáveis. Precisa se curar da exaustão da busca. Precisa se cobrir, descansar, tratar a pele que de tão exposta ficou em carne viva.
A necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio acompanha o ser humano desde que ele entendeu que em companhia de outros seres humanos tem mais chance de sobreviver. No contato e interlocução com o outro é que descobrimos, percebemos ou intuímos quais são nossas virtudes, habilidades, necessidades, dificuldades e questões de ordem emocional. Desejamos caber no logotipo da normalidade. Queremos ter a garantia de que estamos raciocinando numa linha lógica, que faça sentido pra nós e que, principalmente, faça sentido para o outro. São as fugas do padrão nas relações sociais que deflagram um possível transtorno afetivo. Há uma falha no sistema. Alguma conexão não corresponde. O encaixe não poderá ocorrer. O indivíduo que carrega o transtorno fica literalmente desorientado. Está perdido e assim continuará, até que seja diagnosticado. Então, não estará mais perdido. Mas, será alguém reclassificado. Perde o logo da normalidade e ganha outro. Ganha um logo deformado, corrompido, transtornado.
Um dos transtornos afetivos que mais atinge a humanidade atual é o Transtorno Bipolar. Estima-se que cerca de 1,8 a 15 milhões de brasileiros sejam portadores do TAB, nas suas diferentes formas de apresentação. O Transtorno Bipolar é um distúrbio associado a alterações funcionais do cérebro; sobretudo relacionadas às alterações de humor. Pacientes portadores de TAB apresentam períodos de depressão, durante os quais sentem uma tristeza profunda e dolorosa, acompanhada desesperança e pensamentos de menos-valia; alternados com períodos de mania, ou euforia, durante os quais ficam acelerados, apresentam fuga da realidade e podem, inclusive, colocar sua integridade física (e dos outros) em perigo pela falta de capacidade de calcular riscos.
Uma pesquisa realizada pela Organização Mundial de Saúde revela que O TAB é a sexta maior causa de incapacitação para o trabalho no mundo. Quando tratados e diagnosticados precocemente, os indivíduos afetados podem economizar anos de suas vidas que seriam perdidos em todos os setores, desde a esfera afetiva até a profissional.
Portadores de TAB são extremamente vulneráveis às pressões sociais do entorno (familiares e amigos); sentem-se deslocados e inadequados ao perceberem que não funcionam psicologicamente como aqueles que receberam o logo da normalidade. Eles são reféns de suas alterações de humor, mesmo que, por uma incrível tacada de sorte, tenham recebido atendimento médico adequado e não tenham sido vítimas de diagnósticos equivocados; mesmo que estejam corretamente medicados; que recebam o apoio das pessoas mais próximas e afetivamente importantes; mesmo que consigam (e isso é incrível!!!) manter uma rotina de trabalho e estudo; mesmo que frequentem com regularidade ortodoxa os consultórios do psiquiatra e do psicólogo .
Também doenças clínicas como obesidade, diabetes, e problemas cardiovasculares são mais frequentes entre portadores de TAB do que na população geral. A associação com a dependência de álcool e drogas não apenas é comum (41% de dependência de álcool e 12% de dependência de alguma droga ilícita), como agrava o curso e o prognóstico do TAB, piora a adesão ao tratamento e aumenta em duas vezes o risco de suicídio.
Na fase de euforia, os indivíduos portadores de TAB têm os níveis de energia elevados; perdem o sono; apresentam fala acelerada; o pensamento fica rápido, porém difuso; vários projetos são iniciados e morrem inacabados; há uma intensificação do desejo sexual; as ideias podem ser delirantes, pois a capacidade crítica fica severamente prejudicada. Todo esse caos emocional, ganha contornos de felicidade. No entanto, não passa de um desconhecido que está de passagem para trazer uma aparente e fugaz alegria. O “bipolar” vive numa eterna montanha-russa de infinitos loopings. A fase da euforia não passa de um inebriante trecho desse brinquedo que tanto assusta quanto encanta.
A euforia é o looping que vai encontrar seu fim logo ali, depois da próxima curva. Quando a energia escoar pelo ralo; a mente voltar a ficar lentificada; as ruínas dos projetos que nunca decolaram servirem de obstáculos pra novos tropeços; a culpa invadir o peito; a libido voltar a morar na terra do nunca e a tristeza voltar a morder as bordas do coração que ousou acreditar que aquilo era afinal a felicidade. A euforia derrete como o gelo no copo de bebida. Era tão real, tão sólida e agora… Agora escorre, pelos dedos, pela boca, pelos olhos. A euforia vira lágrima de gelo derretido. Escoa dos olhos, mas veio de um lugar bem mais abissal. Veio do profundo desejo de parar de arder, de cicatrizar, de dar um fim ao ciclo de viver em carne viva.