Carta a uma amiga

Imagem de capa: Aleksei Stebliuk, Shutterstock

Desculpa estar a escrever-te. Assim. Desta forma. Optei por fazê-lo para te dar a liberdade de me chamares nomes – se assim o entenderes – ou para me agradeceres – sem teres a obrigação de o fazer só porque estou à tua frente. Optei por escrever-te porque quis que lesses isto só. Afinal de contas, é como estás neste momento. Só. Despida de ti. Ausente de vida. Ausente para viver.

Desculpa estar a escrever-te. Assim. Desta forma. Faço-o porque gosto de ti. Faço-o porque me sinto na obrigação – nem que seja obrigação moral – de fazer alguma coisa. Mesmo sabendo que, neste momento, a única pessoa que pode fazer alguma coisa por ti és tu.

Desculpa estar a escrever-te. Assim. Desta forma. Mas custa-me ver alguém – e custa-me, muito mais, se for uma amiga – vazia de si e cheia de nada. Sim. É como estas, atualmente. Sem vida. Não por fora. Por fora, o teu corpo obriga-se às necessidades mais básicas de sobrevivência. Mas aposto que o ar que respiras te pesa tanto que até isso é um fardo neste momento.

Onde foi que te perdeste, amiga? Onde foi que te deixaste? Onde foi que te deixaste morrer? Onde foi que desististe?

Deixa-me recordar-te como te conheci – e de quem infelizmente tens vindo a desistir. Não nos conhecemos desde sempre, mas conheci-te numa altura em que vinhas com a certeza de quem eras e, acima de tudo, de quem [não] querias ser. Vinhas com a coragem de quem rompeu com uma vida, socialmente, aceite e estável e com a certeza de quem queria ser feliz. De quem merecia ser feliz. Lutaste contra tudo e contra todos e saíste de ti para ser feliz. Foste a mulher que refez a sua vida do zero. Que arregaçou as mangas e disse: «Agora, vou cuidar de mim.» Tiveste a nobreza de, além de quereres cuidar de ti, quereres cuidar de alguém que escolheste para teres ao teu lado, nesta nova etapa, onde tu passaste a contar para a equação.

Escolheste voltar a viver o amor. Do zero. Como se dois adolescentes de tratassem. Descobriram-se, viveram-se e repousaram um no outro. E que bom é viver assim. E que bom é ter um – verdadeiro – amor para viver. Já pensaste que até isso estás a desperdiçar? O que tanto te custou a conseguir, caramba?

Mas a vida, às vezes, é madrasta. E, quando parecia estar tudo, finalmente, calmo, eis que te tiram o chão. A perda de um pai – para as meninas custa sempre mais, não é? Será sempre uma coisa que nunca iremos aceitar. Revolta-nos por dentro. Revolve-nos as entranhas. Queremos, sempre, que eles estejam ao nosso lado para que se orgulhem de nós. Queremos, sempre, ouvir a sua última palavra – a que tem o dom da razão. Nisso, minha querida amiga, infelizmente, não te posso aliviar. Será uma ausência sempre presente. Será um vazio sempre latente. Será uma saudade sempre recorrente. Temos de fazer o luto. Temos de chorar e, tantas vezes, berrar. Mas, depois, temos de continuar. Reaprender a viver. Honrar e recordar. Sorrir e continuar a crescer.

Sim, ainda tens motivos para sorrir, querida amiga. És uma mulher linda. Tens saúde – as maleitas próprias da idade fazem parte do encanto de envelhecer. Tens alguém a teu lado que te ama e que te apoia, incondicionalmente. Tens um trabalho – não é o melhor, mas também não é o pior. Tens uma filha – que, no fundo, está a detestar conhecer uma mãe que tu própria não queres ser e tens uma vida para recuperar.

Talvez não tenhas a real noção de como estás. Sabes como te vemos, atualmente? Uma mulher que está a desistir de tudo. Que se entregou à dor e que se deixa consumir pela apatia dos dias. Uns iguais aos outros. Moves-te a comprimidos. Tomas comprimidos para dormir. Tomas comprimidos para acordar. Enches-te de químicos como se eles fossem os únicos que ainda te dessem a derradeira força para te manter em pé. Mas desculpa dizer-te que são, precisamente, os comprimidos que ta estão a tirar. A força.

Não penses que és a única que sofres. Não. Todos os que te querem bem sofrem. Essa tristeza e desânimo que, hoje, sentes pela perda do teu pai é o que estás a fazer os outros sentirem sempre que olham para ti. Assim. Estás mais morta que viva. É isso que queres causar nas pessoas de quem gostas e que gostam de ti? Já ouviste dizer que «comportamento gera comportamento»? Pois bem, hoje, não és só tu quem está a desistir de viver. A pessoa que tens ao teu lado também está a desistir. Não de ti, mas de vós. É mesmo isso que queres?

Há tantas pessoas a lutarem pela vida e tu estás, voluntariamente, a desistir dela? Tu, amiga? Tu, que tinhas escolhido viver?

Há alturas em que precisamos de ajuda e que devemos ter a humildade de a procurar ou de a aceitar. Não é vergonha. Vergonha é desistir. É não tentar.

Por isso, pega nos cacos, que nós – os que te querem bem – ajudamos a colá-los. Não deixes passar muito tempo. Até porque já não temos muito tempo. Metade da vida já lá vai. É isto que queres fazer com a outra metade?

Desculpa estar a escrever-te. Assim. Desta forma. Optei por fazê-lo para te dar a liberdade de me chamares nomes ou, então, para te dar a oportunidade de [re]começares a viver.



LIVRO NOVO



Júlia Domingues. 39 anos. Jurista de formação, criativa por paixão. Sou feita de gargalhada estridente talvez porque acredite que, estridente deva ser a nossa existência. Não para os outros. Para nós. Estamos começados mas não estamos acabados. E , no fim; no regresso a nós, que consigamos, serenamente, dizer: «Ousei viver!». Sou feita de sentir e o que não me cabe no peito, transpiro-o nas palavras e no desenho. Sou mulher e sou feliz.

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