Imagem de capa: A. and I. Kruk, Shutterstock
Há alguns meses aproveitei um dia livre para degustar a Avenida Paulista. A sensação de invisibilidade nunca deixa de me surpreender e sempre me satisfaz, pois consigo estar sozinho junto com um cardume de outras solidões. Andando por entre fluxos de pessoas, percebo milhares de coisas acontecendo ao mesmo tempo. Pessoas diferentes, quantas histórias de vidas, caras e bocas, pressa, indiferença, energia, é tanta coisa que as árvores que estão descansando nos parques e canteiros quase somem apesar de conseguirem sorrir um verde tímido ao lado de prédios imponentes.
Seguia um fluxo invisível, pensando comigo: “como é bom caminhar sem destino e livre das correntes do tempo”, sentia o movimento de meus pulmões sincronizados com largas pisadas. De fato, gostaria que todos pudessem fazer isso ao menos uma vez, nem que fosse por meros cinco minutos. Depois de alguns minutos andando encontrei uma rua comercial entre dois edifícios espelhados. Como era horário de almoço, diversos grupos estavam na busca por uma mesa que comportasse todos, pela expressão de alguns, o chão até começava a parecer uma opção viável, nesses mesmos as expressões carregavam olhares de fome ou de impaciência com o relógio que se fazia indiferente à jornada de todos.
No final da rua havia uma gráfica e, como queria imprimir alguns textos, desviei daquele pequeno alvoroço, me coloquei na pequena fila que se formava na frente dos atendentes. Assim que pedi as impressões, um homem abordou a pessoa que estava me atendendo. Ele era alto, sério e parecia beirar os trinta anos. Cumprimentou o funcionário, com certa intimidade, o que mostrava que não era a primeira vez que vinha ali. Com uma voz animada, mas ao mesmo tempo suplicante, disse: “Você conseguiu olhar o currículo?”
O funcionário acabou mudando sua expressão e parecia constrangido de alguma forma, carregando a responsabilidade de ser o portador de más notícias e respondeu aliviando a mensagem de uma só vez: “Cara, olhei sim. Acho que está meio vazio.” Acabei me intrometendo, a curiosidade ardeu e olhei para a tela do computador, um arquivo estava aberto, constavam no máximo cinco linhas. Nome completo. Data de nascimento. Cidade. Estado Civil. Celular para contato. Escolaridade. E logo abaixo uma palavra reinava sob um império branco: Experiência.
O homem respondeu, com a mesma voz animada, apesar de dessa vez parecer um pouco abatido: “Realmente, está vazio, mas essa foi a vida que tive, você pode imprimir vários para mim? Assim posso entregar em vários lugares”. Nesse momento meu peito começou a gritar, afinal, esse é o mundo que muitos acabam vivendo, um mundo em que um currículo é maior que uma vida inteira, que os títulos são mais valorizados do que as condutas, que as conquistas profissionais são vangloriadas e as da vida silenciadas. Curriculum Vitae vem do latim e significa “trajetória de vida”. Trajetórias de vida resumidas em um papel? Discordo. Se isso fosse verdade, imagino que aquele império branco embaixo de “Experiência” daria luz a um livro.
Quantos dias não foram tão árduos para se passar, quando a vida não parecia dar trégua? Quantas perdas não cortaram a alma que a fizeram recuar para poder se curar? Quantas alegrias não foram conquistadas ao lado da família? Quantas situações não testaram essa pessoa ao máximo? Com certeza, estou confundindo um ser humano com um personagem, porém, acredito que existia muito mais em sua vida do que um grande vazio, pois essa pessoa não ficou imóvel durante trinta e tantos anos. Escrevo esse texto pois sei que existe essa pressão, seja dos amigos, seja da família, seja da sociedade em si, pois existe a crença de que o emprego de alguém pode falar de sua moral, assim como o rótulo “desempregado” é uma palavra tão assustadora para muitos, afinal, que alma caberia somente na profissão?
Nessa vida passageira, profissão alguma importa se passarmos nosso curto tempo aqui sem um sorriso no peito. Está aqui o que meu peito estava gritando do lado daquele homem: Não se meça por um currículo, por um salário, por uma posição, por uma roupa, por um carro, por qualquer coisa que o pensamento raso vangloria. Meça-se pela forma com que vestiu as dores que a vida lhe entregou, meça-se pela forma como o amor exalou de toda essa combinação, pois é isso que basta para lembrarmos que apesar de tudo e todos somos humanos e não pedaços de papéis.
Olá Fabíola!
Hoje a tarde fiz uma busca no google “quando a vida perde o sabor” e encontrei seu texto “Sabor da vida”. Sendo tocado por tantas belas reflexões, não me contentei e li outros textos seus. A despeito de ter adorado seu cantinho literário, me identifiquei muito com este texto.
Trabalho em recursos humanos, e sempre quando estou trabalhando em um processo seletivo procuro olhar além desses “pedaços de papéis”, sempre acreditando que o candidato que sente de frente conosco possui muito além do que aquelas linhas descrevem.
Mais uma vez, parabéns por este espaço incrível… Pretendo voltar aqui mais vezes!
Abs.