Imagem de capa: Eleonora_os/shutterstock
Você entrou na minha vida como alguém diferente. Irmãzinha da minha melhor amiga, apenas alguns anos mais nova que eu. Teus olhos puxadinhos sorriam com qualquer estímulo. “Manuela” te chamaram, embora tu atendesse melhor com carinhos e cosquinhas. Um bebê lindo e “especial”. Pois é, além de Manuela, te chamavam de especial, e eu entendi bem o porquê. Apesar da pouca idade, quando criança, você sempre foi pura personalidade. Geniosa, destemida carinhosa, espertalhona. Logo: especial! Lembro-me de um dia perguntar para a minha mãe porque você tinha dificuldade de falar como as outras crianças. A minha mãe, então, me contou que você tinha Síndrome de Down.
“Síndrome de Down”. O nome me assustou. Imediatamente questionei minha mãe se aquilo era grave. Ela então, com todo carinho do mundo, me explicou que a tua condição não era uma doença. Você só era diferente, porque tinha um cromossomo a mais que eu. “Um cromossomo a mais” – pensei surpreendida. Aquela informação confirmava outra teoria que eu tinha: você estava a pelo menos um passo na minha frente em tudo.
Nossas famílias, vizinhas e amigas, seguiram suas vidas criando os filhos juntos. Não tenho uma memória de infância ou da adolescência em que você não estivesse lá. Com o tempo e afinidade, desenvolvemos uma linguagem própria para falar contigo. E você nos ensinou outras formas de comunicação. Hora com sons, hora com referências, hora com olhares. Usava de toda paciência do mundo para me explicar tuas ideias, quando eu não conseguia – por alguma deficiência minha – entender o teu universo. Produzias um som, que te acompanhou a vida inteira, que expressava tua satisfação e felicidade – como a zumbido de uma abelhinha. Aliás, hoje penso que todos nós deveríamos desenvolver um som que anunciasse a nossa alegria – desta forma ela não passaria despercebida por ninguém, algo tipo “zzZZZzzz… Ei! Olhem! Tô feliz!”.
Por causa de ti, desde muito cedo, entendi que todo mundo era diferente, de alguma forma. Da infância a fase adulta, por conta de meu contato próximo contigo, fui educada à ideia de que tu não eras menos capaz, menos inteligente ou de maneira nenhuma desprivilegiada. Só diferente. Olhava o mundo com outros olhos, tinha outra velocidade. E que “diferente” não era um problema. A convivência contigo me obrigou a tratar todas as pessoas que conheci com igualdade e respeito. Cromossomos a mais ou não. Talvez não fosse por ti, eu teria sido uma criança mal educada, daquelas que pratica bullying. Ou pior, um adulto intolerante.
Fato é que você cresceu, e hoje, uma mulher, continua me surpreendendo. Eu enxergo mais empatia nos teus olhos puxadinhos, do que outros cidadãos desprovidos do teu cromossomo extra. Já te vi apaixonada exatamente como eu. Sofrendo e se reerguendo após um término de namoro, como eu. Dormindo cedo, batendo ponto, pagando conta, como eu. De TPM, irritadiça e revoltada. Como eu. Vi também você me acolhendo no teu colo, dando teus conselhos e dividindo teu otimismo inabalável por dias melhores.
Mas não foi só em ti, que vi força em superar o preconceito. Vi em Débora Seabra, a primeira professora com Síndrome de Down a ganhar o prêmio de educação por uma câmara de deputados. Vi no kikito do ator Ariel Goldenberg, pelo filme “Colegas”. No maestro, conferencista, apresentador, escritor e ator espanhol Pablo Pineda. Como na também espanhola Angela Bachiller e sua posição de prestígio na câmara de vereadores da cidade de Valladolid. E outros tantos exemplos.
Nesta semana, o dia 21 de março foi marcado pelo Dia Internacional da Síndrome de Down. E eu vim aqui agradecer. Quero demonstrar a minha gratidão a todos os portadores da síndrome, que não apenas executam todas as tarefas diárias, mas que superam os preconceitos e ainda educam pessoas mundo a fora sobre inclusão, unicidade e respeito. Agradeço a perseverança e coragem de pais, que precisam lidar com a falta de estrutura no sistema educacional brasileiro, e que não desistem de mudar e melhorar o cenário atual. Agradeço a todas as empresas que contratam, preparam e promovem uma vida com dignidade e independência a este capital humano tão especial, quanto capaz.
Mas principalmente agradeço a Manuela Magalhães, a minha Manu – amiga, companheira, e exemplo de felicidade em cada etapa de seu crescimento e do meu. A tua participação na minha vida, Manu, elevou os meus conceitos a patamares mais dignos de humanidade. Talvez por isso a síndrome não devesse ser chamada Síndrome de Down* (*referência ao sobrenome do descobridor da síndrome, mas que no inglês poderia significar “baixo”). Talvez a síndrome devesse ser renomeada a Síndrome de “Up” (alto), uma vez que ela tem a capacidade de elevar o espírito e o orgulho de toda pessoa que tem o privilégio de conviver e aprender com alguém que nem você, Manu (Débora, Ariel, Pablo, Angela…).
Esse cromossomo a mais, merece uma dose extra de respeito e admiração. Sem dúvidas!
Fim da sessão.