Imagem de capa: Anatoliy Cherkas, Shutterstock
Minha casa foi plantada por um construtor que entendia da trajetória do sol. A qualquer hora do dia ela está sempre inundada de luz. Mas é pela manhã, quando a luz se torna mais diáfana, que eu me sento em qualquer lugar e vejo a vida perfeita como seria, se não existisse a morte.
Fica tudo envolvido por uma compreensão eterna que me transporta ao mais profundo estado de existir sem dor. Que dura minutos, mas que me abastece por algumas horas. Depois, tudo volta a ser como é: estranhamente perigoso. Mas enquanto não é, desfruto.
Desfruto, por exemplo, a beleza da mesinha redonda, que estrategicamente posicionei ao lado do sofá, e imediatamente me comovo porque essa mesinha foi catada do lixo.
Uma bela manhã, acordei, abri a janela, e quase não acreditei: a minha vizinha jogara fora a mesa redondinha, que deve ter-lhe servido redondamente, durante muitos anos. E eu, favelada que sou, atravessei a rua, de pijama mesmo, me abracei com ela, e com ela atravessei a rua, dizendo-lhe com amor de mãe: “você agora é minha.”
Dei-lhe lugar de honra na sala principal da casa. Que é onde me sento, para aspirar em largos haustos a eternidade tão sonhada.
A mesinha de rattan é o símbolo da minha evolução histórica como ser no mundo.
Eu nunca me imaginei capaz de assumir publicamente que sou capaz de levar o lixo dos outros para mim. Mas ela me faz lembrar que o seu direito de existir coincide com o meu direito de declarar publicamente que tenho vocação para revirar lixo, e de lá extrair tesouros.
Quem sabe, com essa declaração, eu possa inspirar um estilo e livrar o planeta de muitos entulhos. Todo mundo deveria revirar lixo para dar uma segunda chance àquilo que não é lixo, àquilo que pensaram que fosse, mas não era.
Assim é a vida: uns só enxergam lixo onde outros enxergam encanto, estilo e beleza. É uma questão meditativa. Cada um deveria perguntar-se: eu vejo lixo, ou vejo luxo?
O efeito direto dessa digressão visual dá origem ao que vou relatar agora: algumas pessoas jogam no lixo o que não querem, e outras recolhem do lixo o que querem. Quando as primeiras descobrem que alguém ousou querer aquilo que não quiseram, são tomadas por uma ira indefectível, seja desmerecendo o que jogou, seja falando mal daquele que fez o resgate.
Pura dor de cotovelo. O remédio para a dor de cotovelo é falar mal. Porque falando mal, procuram sentir-se menos mal pelo descarte sem critério.
Uma mesa redonda pode virar o que quiser na sua forma esférica: pode compor com o sofá, ou pode existir redondinha em um dos lados da cama, sem fazer hematomas nas pernas da sua dona.
Uma mesa alta de canto, com bastante personalidade, e muito peso, pode virar uma mesa baixa de centro, basta cortar as pernas. Melhor cortar as pernas, se as pernas lhe incomodarem do que mandar a mesa inteira para o lixo.
É assim que lixo vira luxo: cortando aqui, adaptando ali, dando o seu jeitinho e a sua interpretação pessoal a todos os átomos, em estado bruto, que dependem de você para um destino melhor do que o monturo.
Eu sou frequentadora de brechós. Quando estive em Paris, só fiz compras em brechós. Paris é a meca dos brechós. Fiquei tão amiga do Pierre, dono do brechó em frente ao hotel, que no último dia, de tanto atravessar a rua, de tanto ir com uns trocos, e vir com roupas maravilhosas, nos despedimos como amigos.
Ele me disse: – Quando vier a Paris de novo, volte.
E eu lhe disse: – Voltarei.
Embora nós dois soubéssemos que jamais voltaríamos a nos ver.
Na minha cidade, a compra mais memorável foi realizada em um depósito de móveis usados: um trono africano, todo estropeado, mas com vocação para bunda de rei. Ou de rainha. Foi paixão à primeira vista. E o apelo me bateu irresistível: – Que será de ti se eu não te levar para mim? Levei.
Mandei revestir de veludo negro, e depois de pronto, no momento em que o tapeceiro fazia a entrega, descobri que não havia lugar para mais um trono. Dei o trono para o meu irmão, e quem usa é a minha cunhada. Mas o trono ganhou a sua segunda chance e me ama de paixão por isso.
“ASSIM É A VIDA e AGORA É TARDE.”
Entre essas frases um intervalo para reflexão. Não sobre objetos usados, mas sobre as metáforas às quais eles nos conduzem. Existem circunstâncias nas quais somos tentados a jogar fora o que é apenas a representação do nosso tédio. Um olhar mais profundo revelaria que o tédio é nosso e não do objeto.
Nada e nem ninguém, nenhum afeto, nenhuma aquisição, tem poder para fazer o outro feliz, cada um tem a obrigação de fazer-se feliz. E buscar em Deus a própria felicidade.
Preste atenção, baby, ASSIM É A VIDA.
Preste atenção, baby, para que não lhe digam: “AGORA É TARDE.
Agora é tarde porque outra mulher, outro homem estão escrevendo o “happy end” que você deixou pelo meio, seja a história da mesinha que foi jogada no lixo, seja a história de um amor que foi sacrificado como peru de véspera, e que está na posse de outra pessoa, agora.
O que é lixo para uns, é luxo para outros. Por isso, eu cato lixo.
O meu parceiro foi descartado quando ainda era solteiro, jovem, lindo, louro, inteligente, comunicativo, olhos azuis, de boa índole, recém formado e louco de vontade de se casar. Pois acreditem: a namorada de infância sentiu-se entediada por tanta formosura, e pediu-lhe um tempo. Bobeou, dançou.
Nesse tempo que ela pediu – e ele deu-, conquistei para mim a eternidade: peguei o ser, amei, cuidei, beijei, abracei, encantei, providenciei os acabamentos finos,- nele e em mim,-e até hoje, estamos juntos.
Não devolvi, não troquei, não vendi, não dei, não tripudiei, e fiz dele o pai dedicado dos meus filhos, e o avô amoroso dos meus netos. Na época, fiz com certo pudor, mas com firmeza.
E não deu outra: ela reivindicou a antiga posse. Mas o que já era meu, continuou sendo meu, com a concessão de Deus.
Quem mandou jogar fora? AGORA É TARDE, baby.
Como vocês podem ver, só hoje assumi publicamente a minha vocação, mas ela é antiga. Bem antiga.