Vinha trazendo no coração uma mágoa antiga que só fazia doer. Não sabia o que fazer com ela. E como apertava. E como doía. Ficava ela ali no canto esquerdo, bem quieta. Dava os ares de sua graça nas horas mais impensáveis. E como manchava. E como mexia. Pulava no peito como bola desgovernada que desce a ladeira sem olhar para os lados. Queria esquecê-la. Queria traí-la. Trancá-la fora sem pena da chuva. Deixando-a molhar como pano de porta, que sem borda aos poucos se encharca. Queria poder juntá-la com as mãos e com desespero de marujo perdido, arrancá-la para fora do barco. Deixá-la à deriva em companhia das ondas. Ela que se salvasse. Que se afogasse lentamente na imensidão fria dos mares. De longe eu acenaria em meu iate invencível. Lamentando por não ter feito isso há mais tempo. Feliz por ter extirpado todo o tumor. Chegaria em casa tranquila, talvez cansada da viagem. Tomaria uma Novalgina e iria cheia de graça pra cama. Sonharia com cores impossíveis e palavras ainda perdidas. Acordaria plena. Descansada. Completamente feliz. Escreveria meus versos roubados do invisível e ouviria os sons capturados do mundo. Prosseguiria vivendo à procura do irreal e do permitido. E seria feliz se não fosse a falta que se alojaria no peito clamando pela mágoa uma vez perdida, a reclamar junto com a lua sua ausência.
Crônica do livro “As Maravilhas do País de Alice”, Scortecci Editora, São Paulo, 2008.