A bagunça do Dentro da gente

Tudo em uma casa conta uma história. Cada vaso, porta-copos, tapete, cada embalagem de água oxigenada ou esfoliante facial vencido há três meses que fica no armarinho do banheiro- tudo sussurra uma história desejante de ser contada. Basta saber ouvir. E o ar tem ainda mais história se a casa for de gente idosa. Minha avó, por exemplo, tem uma penteadeira-velha-que-a-filha-da-fulana deu, e não se trata apenas de uma penteadeira velha caindo aos pedaços. A penteadeira é minha vó. Fico imaginando quantas vezes ela se sentou ali pra pentear o cabelo, se arrumar pralguma festa, pra passar pó de arroz (tudo isso na época em que ainda tinha agilidade de movimentos e seus vincos eram só na alma e não na pele). Hoje ela deve ter naturalizado tanto a presença da penteadeira quanto sua própria imagem, a ponto de nem sequer perceber que tem um espelho ali no quarto. Se tornaram uma coisa só.

Mas as histórias que os objetos nos contam não se restringem somente ao passado distante, não. Sua organização e disposição, por exemplo, revelam os últimos dias ou semanas da pessoa que ali habita, seus hábitos, costumes. E não devemos tentar organizar cada coisinha, limpar cada canto: a bagunça traz vida à casa da gente. Quero distância da limpeza extrema, dos pisos brilhantes, dos móveis organizados perfeitamente em seus ‘‘devidos’’ lugares inventados por nós. Até porque, no fim das contas, as coisas acabam se organizando sem muita distinção quase que por conta própria. Fósforos, e panos e um abridor de garrafa do Corinthians se confundem em alguma gaveta da cozinha. Camisetas jogadas em cima de um sofá e que estão ali desde uma festa com amigos queridos de duas semanas atrás. Contas de luz antigas em meio a panfletos aleatórios amontoados juntos, com a mesma importância, em cima de uma escrivaninha na sala. Quadros vindos da Índia trazidos pela cunhada que hoje mora no Japão. Fotos de pessoas que não sabemos quem são mas dá pra sentir a felicidade delas só de ver tanto sorriso junto pendurado pelas paredes.

Observando os objetos da casa de alguém dá pra saber seus costumes, sua personalidade, seu próprio arranjo cósmico marcado na nossa existência espaço-temporal. Não são os objetos que nos permeiam, mas nós que os habitamos. Enfiamos nossa alma dentro de calças jeans rasgadas e garrafas de cerveja importada pra tentar dar forma àquilo tudo de Dentro da gente que não conseguimos preencher. Um brinde a esta desorganização concreta que revela nossa própria entropia interna, sempre se mudando: nós somos eternos estares.



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Thaís Amaral tem 22, mora no interior de SP e publica os murmúrios de seu mar de dentro no blog Sereia no Aquário (sereianoaquario.wordpress.com).

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