Por Mario Feitosa
Já cantava Lulu, e todos repetíamos em coro: “Consideramos justa toda forma de amor”.
Mas quais seriam elas?!
Que pergunta…
Amor talvez seja a palavra mais repleta de sentidos e, por que não, uma das mais esvaziada deles. Não duvido, também, que venha a ser uma das mais repetidas da história.
Escrevemos cartinhas “de amor” para as paixonites da infância, músicas “de amor” para as namoradinhas do colégio, juramos “amor eterno” no relacionamentos da juventude, bradamos o quanto “amamos” quem está enchendo a cara conosco, no escuro da madrugada.
Tantos sentidos num só termo, uns mais outros menos valorosos e sinceros que de fato deveriam…
Para não divagar demais, um pouquinho de etimologia sempre ajuda a levar a conversa para onde ela realmente valha a pena.
Nosso termo amor é herança da língua latina, por um de mesma grafia embora fonética diferente, o “ámor”. É um termo que designa um gostar de algo, mas com um caráter mais profundo e mais de reciprocidade – diferente do termo “pássio”, que é uma inclinação ao gostar mais animalesco, um querer de grande intensidade, mais obcecado, mais em busca de retirar bem do que o termo primo, que deixa implícita uma inteligência como objeto dessa inclinação. “Pássio” também remete à dor, por seu excesso de emoção – vide seu uso para descrever o sofrimento bíblico do Messias cristão na “Pássio Christi”.
Em paralelo, vale trazer junto outra herança de sentido, que inclusive alimentou os termos latinos, como fez com tudo: a herança grega.
O grego, embora mais velho que o latim (e seu pai, sob certo ponto de vista), possuía uma riqueza ímpar em seus vocábulos. Idioma natural dos maiores pensadores da história do Ocidente, tudo podia ser descrito com um termo exato, inequívoco, diferente de seus contemporâneos, como o Hebraico que, grafado, aceitava múltiplas possíveis traduções, já que não possuía transcrição de vogais – as considerações e notas de rodapé dos LXX, na consolidação do Velho Testamento para o grego, expõem esse fato de uma forma muito clara, muito sincera.
Isso tudo para ilustrar a preocupação grega em expressar o sentido exato do termo, sem muita abrangência, sem equivocidade ou livre interpretação.
No caso do amor, a riqueza grega fica explícita na quantidade de termos possíveis para descrever cada nuança. São eles (transcrevendo foneticamente, claro): “eros”, “ágape”, “philia”, “stergo” e “théleme”.
“Eros”, que dá nome ao deus do amor na mitologia, nem um pouco por acaso filho de Afrodite, a deusa da beleza (o Cupido, trazido para nossa cultura por herança latina), é uma forma de desejo sexualizado, obviamente tendo como objeto outra pessoa. Desse termo grego surge nossa variação “erótico”, que designa algo vinculado ao desejo sexual.
Esse, então, se ocupa da relação humana de gostar de alguém e, simultaneamente, desejar-lhe sexualmente, numa leitura simplista.
Em seguida, o “ágape”, amplamente utilizado por Saulo, depois Paulo, de Tarso, nas cartas episcopais que enviava às suas comunidades cristãs apadrinhadas.
“Ágape”, por sua vez, define um sentimento de querer bem de uma forma muito profunda, doada, altruísta, elevada, espiritualizada.
Num paralelo com nossas realidades, “ágape” definiria o amor divino à humanidade, por exemplo. E, nota informal, não temeria errar colocando o amor maternal nessa categoria.
Seu correspondente latino era o “charitas”.
O próximo “philia”.
Fruto das reflexões de Aristóteles, o Estagirita, “philia” representa a lealdade e cumplicidade de amigos desinteressados, o amor paternal. É o desejo de bem pelos vizinhos, conhecidos, desconhecidos. O desejo de bem a um semelhante. Poderíamos livremente dizer, é o desejo do bem pelo bem, direcionado ao coletivo e não ao particular.
É amor de doação, como o “ágape”, mas se alimenta de reciprocidade, embora não a exija de fato.
É o amor no seu sentido mais tradicional.
Ficam “stergo”, utilizado para descrever laços automáticos, como por parentes, ou até o apego que desenvolvemos por nossos cães, pelo convívio; e “theleme”, o afã a uma ideologia, por exemplo, um envolvimento.
Quantas e tão diferentes formas de entender o sentimento aos olhos de um idioma primitivo, não? E qual delicadeza não foi utilizada na definição de seus sentidos, separando em fatias.
Penso já termos matéria de reflexão suficiente, e podemos passar a considerar essas diferentes formas de amor e as que nasceram nos tempos modernos.
Hoje, ao contrário do que se espera no processo de civilização, o termo vai perdendo sentido. Os cinco termos gregos viram dois latinos que, embora estejam no nosso idioma, tranquilamente poderiam definir a mesma realidade, ou seja, esvaziamos um deles e atribuímos o mesmo sentido aos dois. Viraram sinônimos…
Temos amor por nossos animais, amor por nossos amigos, pelo nosso emprego, pelo nosso prato predileto, pelo tempo ameno, por uma roupa, por um seriado, pelos filhos, pela parceira… Zona, não?
Podíamos perfeitamente amarmo-nos e gostar MUITO do prato, da música, mas não. Amamos! Quando não adoramos, que é uma forma de devoção ainda mais profunda que o amor de fato, que é render-se a algo ao custo da própria existência.
Como é comum, nos primeiros dias de um namoro, após poucas semanas ambos estarem publicamente declarando seu profundo e eterno amor em redes sociais. Será mesmo que é tão simples devotar um sentimento profundo e deliberado assim a alguém? Será que não era apenas paixão?
Voltando – vai e vem danado, né – para a paixão, essa é, por sua vez, um processo fisiológico. É o que proporciona aos mamíferos meios de reprodução.
O astrofísico Carl Sagan, inclusive, chamava a paixão de invenção desses.
A paixão, o “eros”, é o que nos permite relacionar-nos com parceiros sexuais (olha que legal) em relacionamentos afetivos, por nos sentirmos fisiologicamente atraídos por esses.
Sem permear muito questões científicas, Aristóteles definia a paixão como entender um bem no outro ser (objeto ou pessoa) e desejar esse bem, seja ela uma utilidade prática ou a satisfação de um prazer. Essa paixão não exigia responsabilidade ou reciprocidade.
Epicuristas, expandindo esse sentido, entenderam a paixão como animalização do ser humano, e obstáculo para o prazer – a paz de espírito pela quietude da alma.
Apesar dessas notas de curiosidade, o sentido de paixão corrente hoje é mais próximo do “eros” grego que da “pássio” latina. Isso é um fato.
Transformamos o gostar num paralelo à “pássio”, e o devotamos às coisas.
Aí começa toda uma bagunça, uma salada de esvaziamento do amor de fato outra vez, afinal, embora gostemos de música (“pássio”), amamos aquela (“ámor”). Mas amor não exige reciprocidade?! Não está muito mais relacionado a uma balança entre “philia” e o “éros” grego, nas relações de casal?!
E aqui, pronto! Não tem mais como desenhar os círculos e colocar cada realidade dentro do seu correspondente.
Será que não é o caso de revisitarmos esses termos, suas origens, as heranças primitivas e, num ato de respeito pelos nossos antepassados, passar a utilizar cada termo para seu conceito adequado?
E se começássemos a amar nossa parceira, nossos filhos, nossos pais e irmãos (de sangue e escolha – vulgo amigos), amar nossa espécie, nosso planeta (afinal, embora não seja uma pessoa, mesmo em sentido amplo, o relacionamento com esse planeta sim é recíproco). E se começássemos a nos apaixonar por nossas paqueras e simplesmente gostar, seja gostar ou gostar muito, de objetos e realidades inanimadas?
Será que não seria esse o caminho para devolver valor às relações amorosas, inibir os usos indevidos e o esvaziamento do único sentimento capaz de nos salvar do nada para o qual caminhamos e da superficialidade à qual estamos nos atando?
Será que não seria uma resposta para o egoísmo que impera e uma retomada da caminhada rumo à nossa humanidade e, consequentemente, a construção de uma Humanidade?
Eu não sou ninguém para dizer, mas lembro perfeitamente de quatro cabeludos repetindo exaustivamente que tudo que precisamos é amor e jamais consegui tirar da cabeça o verso de Freddy Mercury e David Bowie em “Under Pressure”:
“Porque amor é como uma palavra demodê… E o amor te desafia a se importar com as pessoas na beira do abismo da noite. E o amor desafia a mudar nosso modo de cuidarmos de nós mesmos… Esta é nossa última dança! Nossa última chance! Somos nós sob pressão!”
Que passemos a entender o amor de fato, viver o amor de fato, lotar o termo de sentido verdadeiro outra vez e voltar a viver sua natureza em profundidade. Nesse exato momento teremos alcançado o poder de considerar justa toda e cada uma de suas formas ;).
Fonte indicada: Mario Feitosa