Por Fernanda Moura – via Obvious
“Como é imensa a felicidade da virgem sem culpa. Esquecendo o mundo, e pelo mundo sendo esquecida. Brilho eterno de uma mente sem lembranças! Cada prece é aceita, e cada desejo realizado” Alexander Pope
Como seria viver se pudéssemos apagar da nossa memória todos os momentos desagradáveis em nossas vidas? Como seria viver sem dores existenciais, sem culpa, sem tristezas?
É notória a busca do ser humano pela felicidade. Mas o que é felicidade? É possível viver bem sem estar feliz? Por quê entendemos a felicidade como condição sine qua non para uma vida plena?
Muitos filósofos debateram este tema. Desde os pré-socráticos até a atualidade. Para Platão, por exemplo, uma pessoa pode considerar-se feliz quando tem as três partes da alma (razão, vontade e desejo) em equilíbrio.
Já para Schopenhauer, a felicidade é uma ilusão. Para ele a vida oscila como um pêndulo entre a dor e o tédio. A felicidade é somente a momentânea satisfação de um desejo.
Felicidade é, como podemos perceber, um conceito subjetivo. Ela vai depender de suas percepções acerca do mundo e de si mesmo. Perceber a si mesmo é diferente de conhecer a si mesmo.
O conhecimento quando entendido como separado da percepção, é puramente racional. Ele não utiliza os sentidos como método epistemológico. Nossas memórias, ao contrário, são percepções de momentos vividos. Não são conhecimentos. Elas não são factuais. Nossas percepções atuam em quem achamos que somos. Qual a diferença entre ser algo e achar que é algo?
Se temos parte da nossa memória extraída, retirando assim do nosso passado algumas experiências que tivemos, seremos a mesma pessoa? A resposta não é fácil, mas acredito que sim. No meu modo de ver, somos a mesma pessoa, porém pensamos que somos outra pessoa. Basicamente o que muda é o que achamos de nós mesmos em relação às nossas experiências.
No filme O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças vemos como, à medida que as pessoas passam por nossas vidas, vão deixando marcas em nosso ser. Mesmo que não percebamos, algo se modifica no momento em que nos relacionamos com algo ou alguém. A partir daí jamais poderemos voltar a ser o que éramos antes.
Mesmo que nossas mentes apaguem uma determinada pessoa, o significado das instâncias de uma relação se espraiam para além do cérebro. O corpo também guarda as sensações e os significados percebidos em cada toque, em cada respiração.
Temos como uma imprint da pessoa em nossas células. E mesmo que o tempo, a distância, ou qualquer outra coisa te afaste da lembrança desta pessoa, qualquer pequena coisa pode despertar um sentimento, uma lembrança afetiva. Uma música que ouviram juntos, uma sobremesa compartilhada.
Este é um filme essencialmente romântico mas que levanta questões muito interessantes sobre a forma como nos relacionamos. Um relacionamento não é só uma memória em comum. São pedaços do outro deixados em cada molécula do nosso corpo. Apagar memórias é o ato mecânico de apagar fatos. Mas os sentimentos que acompanham as lembranças vivem também em um corpo que vive e pensa; um corpo que apreende e sente cada minuto vivido.
Nas cenas em que o personagem de Jim Carrey está conversando em sua mente com Clementine, ele não está falando com a Clementine em si. Ele está conversando com suas próprias percepções de Clementine. E é ali, no profundo das suas percepções, no chamado subconsciente na psicanálise, que ele se depara com seus verdadeiros sentimentos em relação à ela.
Às vezes, no dia a dia, nossas sensações mais profundas e verdadeiras acabam ficando sufocadas pela futilidade da rotina. Clementine e Joel deixaram que os momentos de tédio, afogassem o que sentiam um pelo outro, dando lugar a um mar de rancores e críticas.
Achar que o amor e a felicidade vivem somente nos momentos de paz e tranquilidade é reduzir tais sentimentos a uma alegria simples e vulgar. Felicidade não é alegria. Amor não é necessariamente bom. Não há nada que seja totalmente bom ou ruim. Reduzir sentimentos a juízos de valor a respeito destes, é o mesmo que destruir sua natureza incerta e complexa.
Joel teve que apagar da sua memória a camada superior, a camada rasa dos relacionamentos para chegar a profundidade do que estes representam. O amor não está na lembrança de uma pessoa. O amor reside no significado profundo da sua percepção interna e subjetiva da pessoa amada.
A pessoa amada não é uma memória. As memórias são fracas e pouco confiáveis. A pessoa amada é a própria encarnação em você daquilo que foi vivenciado. Quem já amou e desamou, sabe que é um caminho sem volta. E que, embora o outro nunca te pertença, ele sempre fará parte do conjunto de percepções que te perfaz enquanto ser , enquanto agente no mundo. Ainda que, no consciente da sua razão, você prefira esquecer.