Por Mônica Montone – via Obvious
Amanda parecia um anjo: olhos azuis, cabelos pretos anelados, boca miúda e naturalmente rosada, bochechas salientes, pele alva e macia como um buquê de magnólias.
Ao contrário de sua irmã mais nova, Aninha, que dera muito trabalho para os pais na adolescência com bebedeiras e fugas repentinas de casa, Amanda era uma filha presente e dedicada e adorava ir com os pais aos domingos assistir concertos no Teatro Municipal desde criança.
Aos 12 anos de idade já falava inglês fluente, aos 17 formou-se bailarina clássica e aos 18 mudou-se para Paris para estudar francês.
Aos 23 anos, iniciando uma pós-graduação em Arte Moderna, casou-se. Mas apesar de sua casa ser a casa dos sonhos de qualquer menina – com tapetes felpudos na sala, flores rosa-chá nos vasos, luminárias modernas e aconchegantes, objetos de arte sobre a mesa de centro, vista para o parque –, Amanda vivia um pesadelo.
O figurão da alta sociedade com quem se casou não demostrava o menor interesse por suas atividades profissionais, não valorizava nenhum pequeno gesto que ela fizesse – como deixar seu roupão branco perfumado e dobrado sobre a cama -, bebia muito, dormia fora de casa e a traía com frequência. Chegou a traí-la com a sua irmã, o que resultou, evidentemente, na separação do casal e numa briga terrível de família.
Amanda, que nunca se considerou uma mulher bonita – achava-se bonitinha –, passou a acreditar que os desastres do seu casamento foram culpa dela: “Talvez eu não seja interessante o suficiente”; “Talvez eu não seja boa de cama”; “Talvez eu devesse ter sido menos boazinha”; “Quem sabe se eu o acompanhasse nas festas e nos bares…”.
Durante anos Amanda carregou o fantasma da culpa como um cadáver preso ao próprio corpo. Até que recebeu uma oferta para trabalhar num museu em Florença, arrumou as malas, enterrou o cadáver e mudou-se.
Os dois anos que passara na Itália foram fundamentais para que ela fizesse as pazes com ela mesma, descobrisse sua força, sua beleza, sua sexualidade.
De volta para o Brasil, conheceu André, o maestro. Ele era bonito, meio misterioso, viril e delicado num só tempo, vestia ternos clássicos, de corte italiano, tinha morado em Viena. Foram apresentados por amigos em comum, no coquetel de estreia de um concerto na sala Cecilia Meireles. A atração foi mútua e imediata.
Do coquetel saíram para jantar e passaram três horas falando sobre arte, filosofia, música erudita, nazismo, judeus, culinária italiana, o sexo das baleias. Quanto mais André falava, mais Amanda tinha vontade de atirar-se em seus braços e mergulhar em sua boca e sua pele. Sentia sua face corando a cada palavra pronunciada por ele e sabia que o ardor não era devido ao efeito das duas garrafas do vinho que beberam. No entanto, preferiu voltar para casa. Afinal, ela não era o tipo de mulher que transava no primeiro encontro. André apreciou o seu gesto.
Após quatro meses de paixão definitiva, rodadas intermináveis de sexo, concertos no eixo Rio/SP, ostras, vinho branco, um pulinho na Áustria para prestigiar a regência de um amigo – com passagem de dois dias por Paris, oui oui –, Amanda, a pedido de André, mudou-se para a casa dele.
Logo na primeira semana sob o mesmo teto, André teve uma crise de ciúme violentíssima – dessas de quebrar cinzeiros – por conta de um comentário que leu no Facebook de sua amada. Ela, morta de amor por ele, sentindo-se abarrotada, preenchida de sua presença por todos os cantos, como uma mala onde não cabia sequer um suvenir ou uma meia, não entendia a desconfiança de André, não entendia como ele não conseguia perceber que seu coração pertencia inteiramente a ele, mas achou melhor deletar seu perfil na rede social – afinal, nem ligava tanto assim para aquele mundo de futilidade e superficialidade, aquele aquário de vaidades.
Na semana seguinte, fora a vez dela ter um rompante: incomodada com as mensagens que a flautista da orquestra mandava para André em horários inconvenientes pelo Whatsapp, exigiu que ele colocasse uma foto do casal em seu perfil. Assim ele o fez.
Entre risotos de alho-poró preparados a quatro mãos aos sábados, vinho branco aos domingos, leitura partilhada de jornal com suco de laranja e mamão papaia todos os dias pela manhã, algumas brigas de ciúmes, interpretações de cantatas que ele ensinava a ela e sexo, muito sexo, Amanda se sentia amada. Amanda se sentia, até mesmo, prestigiada pelo ciúme de André.
Cineminha, programa que sempre gostou de fazer com as amigas, abandonou. As poucas vezes em que tentou sentiu tanta vergonha, uma vergonha tamanha de André, que desistiu. Ele, que detestava salas de cinema, sempre ironizava quando ela chegava do passeio: “Como foi seu programinha classe-média? Saia pra lá, você está cheirando a manteiga de pipoca”…
Para impressionar André, matriculou-se num curso de alemão. Queria surpreendê-lo com a leitura original de Goethe, uma vez que as línguas inglesa, italiana e francesa eram consideradas obrigatórias por ele.
Apesar de discreta, nunca dispensou rímel, blush e gloss, porém, de tanto ouvir de André “prefiro você ao natural, fica mais bonita”, deixou de usar quando estava com ele e mantinha sempre lenços umedecidos dentro do carro para remover a maquiagem antes de entrar em casa.
Enquanto Amanda se esforçava para agradar André, este, com o passar o tempo, além de criticá-la por pequenas coisas – como seu gosto por usar meias no lugar de chinelos para andar em casa – passou a se recolher com frequência em seu escritório (território onde ela não podia entrar).
O fantasma da culpa ressuscitou. Amanda sentia a iminência do fim de forma tão concreta que era capaz de cortá-la com uma faca de pão. A única coisa que a tranquilizava minimamente era o fato de que na horizontal André despejava todas as palavras de amor que toda mulher gosta de ouvir sobre ela e se dissolvia junto a ela em orgasmos faraônicos.
Por quê? Por que o André da horizontal era tão diferente do André da vertical? Por que no correr dos dias ele a tratava com impaciência, deboche, irritabilidade e implicância e na cama se colocava como um doce servo obediente que estava no mundo apenas para servi-la?
“Talvez ele me ame com a mesma fome do início, mas não tenha aptidão para dividir o mesmo teto. Minha vinda para cá foi muito precoce! O que eu posso fazer para consertar isso?”, era o que Amanda pensava enquanto chorava baixinho, escondida no banheiro, e pintava as unhas de nude (única cor que ele gostava) – duas coisas altamente condenáveis por André: o choro e o cheiro de esmalte.
– Amiga, mas você está feliz? – era a pergunta de suas amigas, quando por ventura a encontravam.
– Claro que estou! O André é o homem da minha vida, o cara mais incrível que já conheci! Aliás, ele vai reger semana que vem, quer ir?
Amanda secou. Secou, enclausurada no castelo de marfim de André, castelo cheio de regras, condições, convicções, possessões e exigências. Amanda secou.
Já não era mais uma mulher com vontade própria, necessidades pessoais, viço, brilho nos olhos. Até mesmo sua beleza física secou: os cabelos perderam o brilho e passaram a ficar amarrados por mais tempo, a pele estava opaca, a sobrancelha sempre tesa, os lábios sem sorriso, o corpo esguio escondido em roupas largas e escuras para não atrair olhares e provocar a fúria de André.
Amanda tornou-se um papel carbono meio apagado de André.
Um ano e meio depois, André, que tinha feito um pacto de fidelidade com ela e conseguiu cumpri-lo, apaixonou-se pela nova violinista da orquestra e comunicou que desejava se separar.
Foi no dia em que estava encaixotando seus pertences para deixar a casa de André que Amanda entendeu as palavras chulas de sua irmã, Aninha: “Tem homem que tem a porra ruim! Basta a porra dele entrar na boceta e na alma de uma mulher para ela secar completamente, perder a vida, o viço, o brilho. É por isso que eu sempre digo: ‘antes só do que mal apaixonada'”.
E foi ali, também, embalando suas coisas, que se deu conta de que talvez André nunca tenha sentido amor por ela. Que André não amava ninguém a não ser ele mesmo. Que André não gostava de mulher! Tudo numa mulher que não fosse a boceta o incomodava. Ele não gostava do feminino. Tudo, absolutamente tudo que dissesse respeito ao feminino, o enfastiava, o enjoava.
Enxugou suas lágrimas, ajeitou tudo dentro do carro, despediu-se da gata Maria – a única que fez companhia para ela durante o empacotamento – e decidiu parar de adiar um sonho antigo: mudar de profissão e ingressar numa faculdade de Psicologia.