Algumas expressões são autoexplicativas: “sentimento oceânico” é uma delas.
Descobri-a entre as primeiras páginas de “O Mal-Estar na Civilização”, de Sigmund Freud.
Freud, ao abordar a religiosidade, que ele próprio considerava uma ilusão, foi confrontado com os argumentos de um amigo não identificado no livro. Este amigo entendia que a fonte da energia religiosa seria não uma ilusão, mas uma real sensação de eternidade, um verdadeiro “sentimento oceânico” a partir do qual alguém poderia considerar-se religioso, ainda que rejeitasse a fé, a crença em um deus onipotente ou na vida após a morte.
O “sentimento oceânico” é tomado por Freud como uma impressão de vínculo e comunhão com o mundo. Como psicanalista, Freud rejeita a expressão. Como leiga, eu a achei tão bonita que simplesmente não pude esquecê-la.
Se Freud refutou o sentimento oceânico como explicação psicanalítica para a crença religiosa das civilizações, eu o resgato em seu esplendor literário. A literatura não quer ser ciência; por isso, tem essa belíssima licença de revolver o lixo das ideias.
Na verdade, desde que li esse livro, guardei a expressão como carimbo para os momentos que vivo. E tenho colecionado meus sentimentos oceânicos.
“Sentimento” é uma palavra aberta – nela cabe toda a massa difusa de nossa subjetividade.
“Oceânico” é um adjetivo emprestado do substantivo “oceano”. O oceano é a imensidão líquida que envolve 71% do nosso planeta. Vasto e grandioso, abriga em seu ventre os segredos de uma biodiversidade escondida de nós, que, enquanto seres terrestres, vivemos à margem do principal componente da superfície da Terra.
O oceano é místico e infinitamente belo: desconhecemos todo o esplendor biológico que comporta. Ele sugere eternidade: quando nosso olhar investiga seu fim, encontra a linha do horizonte, que é o limite dos nossos próprios olhos, nunca do oceano; este parece prosseguir de modo a penetrar o imensurável.
Oceânico é o sentimento capaz de fazer caber em si a imensidão do mundo.
Quanto a nós, às vezes, há sentimento sem oceano.
São os dias que parecem transcorrer dentro de quadrados minúsculos, no interior das jaulas feias da rotina e dos deveres. Às cores da vida parece faltar o azul celeste espelhado na vastidão líquida dos mares. São as lágrimas miúdas que vertem dos olhos e secam nas fibras do travesseiro; sem imensidão, sem eternidade. Nossa profundidade e nossa importância não cabem no cotidiano raso e suas ocorrências superficiais.
Mas há, também, oceano sem sentimento.
Quantas vezes testemunhamos a beleza infinita e única de um acontecimento, mas nos falta a disponibilidade do coração? Quantas vezes deixamos que o cansaço, o costume e a lembrança nauseante dos fracassos nos congelem diante de uma situação na qual deveríamos nos lançar com ardor?
A magia só ocorre quando sentimento e oceano se fundem em um torpor muito difícil de ser descrito: é o sentimento oceânico.
Não existe uma fórmula para ele; cada um de nós o experimenta a seu modo.
Viajar me desperta o sentimento oceânico. Experimentar o inédito das culturas, dialogar com pessoas diferentes e visitar a beleza do que se construiu tão alheio a mim me faz mergulhar em uma profundeza de sensações. O prazer de viajar é tão intenso que esqueço o conforto, a pressa, o medo de altura, a timidez: o desconhecido é um mar aberto onde posso inventar de reinventar-me e fingir ser quem eu seria em um lugar distante, distinto.
Encontro em algumas pessoas o sentimento oceânico. Diálogos que se interpenetram, ideias que se conectam sem a necessidade de palavras explícitas. Com algumas pessoas, construí arduamente esse tipo de relação. Com outras, não precisei me esforçar: soube desde o primeiro instante que eram oceanos seguramente navegáveis sem mapas ou recursos cartográficos.
Um vinho ao som de Billie Holiday ou Ella Fitzgerald faz da noite de luar um oceano negro no qual posso me emaranhar eternamente, perdida no encantamento com a vida.
Uma paisagem inesperada descoberta no vértice de um morro. Uma cena singular flagrada no miolo da cidade. A conexão com a natureza, com os outros animais. O perfume da grama cortada, do bolo de cenoura da mãe, o abraço de uma pessoa distante; uma música, um poema, algo que nos faça reviver pedacinhos de passado. Um livro que nos conduza como se a realidade morasse ali, na sucessão das páginas.
O sentimento oceânico tem um forte elemento onírico – mistura à realidade ingredientes de sonho, memória e imaginação.
Quando encontramos alguém capaz de nos causar sentimento oceânico mesmo nos dias de rotina, é preciso impedir que passe junto às ocorrências ordinárias da vida.
O amor, aliás, deve ser como a perfeita expressão do sentimento oceânico. Não há um amor que vislumbre seu fim ou que reconheça ilusória sua impressão de eternidade e imensidão.
O sentimento oceânico transcorre no interior de um momento, e momentos são finitos; mas o sentimento oceânico, tomado em si, não conhece tempo e espaço.
O amor, em seu deslumbramento, só sabe se manifestar com eternidade e imensidão. Se um dia deixar de ser eterno e imenso, é porque se extraviou; oceano e sentimento perderam seu liame, sua conexão.
Todo amor, mesmo que se diga terminado ou reduzido a escombros, foi eterno e imenso enquanto aconteceu. É o que diz Vinicius de Moraes no célebre verso dedicado ao mais perfeito sentimento oceânico: “que seja infinito enquanto dure”.
Sentimento oceânico é aquilo que justifica o todo, que nos enche de boas razões para existir. É verdade que ele se torna difícil para nós, que nascemos com mapas prontos para o sucesso e somos constrangidos a segui-los sempre, sob ameaça de sermos considerados pessoas menores e desprezíveis. Assim, natural que nos deixemos conduzir por caminhos terrestres, duros e secos.
Mas eu apostaria que ainda podemos encontrar nossos meios amar, viajar, ler poesia, fazer amigos, sonhar, preparar bolos de cenoura e experimentar os encantos do mundo. Ainda podemos nos libertar dos escafandros da rotina, que nos tornam tão insensíveis à vida. Ainda podemos colocar nossos corações em sintonia com a beleza oceânica de existir.
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