Amor silencioso

Sempre gostei de silêncios demorados, desses que chegam sorrateiramente e invadem todos os espaços. Não falo do silêncio de quem tudo sufoca, esse aterroriza e machuca mais que palavras disparadas em queda livre. Me refiro ao silêncio de quem não precisa fazer alarde, por simplesmente não sentir a menor obrigação de afirmar nada ao mundo.

Em tempos de tanto barulho por nada, ou até barulho por algo que realmente necessita de estardalhaço, mas quase sempre cheio de ativismo da boca para fora e reações inflamadas de agressividade, me vejo testemunha de uma cena que me fala tanto de uma forma silenciosa. Um papo reto com a alma sem a intermediação de qualquer ruído, indo mais fundo que qualquer conjunto de palavras articuladas com argumentos e contra-argumentos aparelhados pudessem fazer.

Era um almoço qualquer no shopping em frente a minha casa, eu na correria de querer colocar qualquer coisa no estômago e cair fora, o shopping no modo acelerado de sempre: Pessoas desfilando suas bandejas, desviando de obstáculos assim que saem do balcão de pedidos, erguendo a cabeça em busca de uma visão privilegiada do cenário, torcendo para encontrar um derradeiro lugar desocupado e chamar de seu. Filas ensandecidas por dois hambúrguers, alface, queijo, molho especial, cebola e picles no pão com gergelim. Pais brigando com filhos por derramarem o suco ou por não comerem toda a comida do prato. Filhos lendo o cardápio em voz alta para pais que já não tem mais a visão e a audição como uma super aliada do dia a dia. Casais trocando garfadas, chamegos e zapeadas no celular. Funcionários frenéticos com seus paninhos em movimentos circulares sobre as mesas, para deixá-las prontas para que um novo grupo de clientes pudessem se sentar. E aquele burburinho de conversas, pedidos, risadas e broncas intermitentes ao fundo.

A gente se acostuma com essa configuração atordoada quando se está em um shopping e até espera por ela, talvez, por isso, os dois homens e a criança já quase adolescente dividindo a mesa em frente a minha chamaram a minha atenção. Quer dizer, por aparentarem exatamente o oposto daquele cenário intranquilo de um shopping em pleno final de semana. Os três estavam almoçando juntos, o garoto que visivelmente tinha uma limitação física dos seus movimentos era auxiliado por um dos homens que o acompanhava, recebendo comida na boca. No meio de tantas outras pessoas eles eram apenas mais três, mas tinham uma serenidade que não se encaixava naquele ambiente tumultuado. Percebi isso logo de cara e fiquei de longe, observando-os.

Foi dessa forma que acabei sendo presenteada como uma cena simples e de puro amor. Amor que não se grita aos quatro cantos, simplesmente se vive. O menino preocupado como o homem que o alimentava resolveu avisá-lo de que a comida dele iria esfriar, se ele continuasse o ajudando com suas garfadas. O garoto parecia incomodado com isso, sabia que precisava de ajuda para comer, mas não queria que o outro comesse comida fria por sua causa. O homem então olhou para o próprio prato, para o garfo que já estava suspenso no ar com a comida do menino e como se estivesse encontrado a solução mágica para o problema seguiu em frente na sua tarefa de ajudá-lo a comer. Entre uma mastigada e outra do garoto pegou seu próprio garfo e começou a comer um pouco da sua comida também. Não satisfeito e surpreendendo ao menino e ao outro homem que os acompanhava, começou a alimentar o terceiro integrante da trupe, que poderia fazer isso muito bem sozinho. Mas o homem quis fazer do pequeno problema que apareceu em sua frente uma solução compartilhada entre os três. Pronto, estava estabelecido o rodízio: uma garfada pra você, outra pra ele e outra pra mim.

O gesto inesperado arrancou risadas do garoto e acho que também um certo alívio. Os três ficaram ali dividindo garfadas e risadas sem pressa nenhuma. Fiquei esperando a câmera abrir e os créditos finais de alguma marca disposta a nos emocionar aparecer. Felizmente, não teve créditos finais, teve amor do começo ao fim daquele almoço. Eles não trocavam só garfadas, compartilhavam um momento inteiro entre os três sem a intervenção de mais nada. Parecia que aquela cumplicidade que eles exalavam bastava.

Não faço ideia de qual era a relação entre eles. Pais e filho, amigos, enfermeiros e paciente, sei lá, o que importa é que parecia ser real, calcado em puro afeto. Eles não tinham a intenção com um gesto tão simples de dizer a ninguém como é que se ama e o que ou quem é que se pode amar. Não tinham o discurso na ponta da língua, não estavam ali para evangelizar ninguém, muito menos para ostentar nada, estavam apenas almoçando. Eu é que por sorte fui a intrusa a entender que eles são o discurso na prática.

Uma cena pequena como essa se torna grandiosa diante de tanta mesquinhez que se proclama em nome do que quer que seja por aí. Que privilégio o deles três viver de um amor sem barulho, não por se esconder, ou ter motivos para isso, apenas por ser despretensioso mesmo. Mais preocupado em ser do que parecer ser. É esse tipo de amor que se alicerça em si mesmo para sobreviver que carrego a esperança, talvez utópica, de que um dia ainda domine o mundo. O amor onde a gente não precisa levantar bandeiras, só o garfo de forma alternada para que ninguém coma comida fria.



LIVRO NOVO



Aquela entre as palavras que escondo e revelo quase sem querer.

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