Sábado passado caiu a luz lá de casa. Não foi por muito tempo, somente tempo suficiente para o Mateus aparecer na minha cama em um pulo, e o Murilo sair correndo do chuveiro gritando meu nome – “MANAAAAA” – sim porque lá em casa meu nome é “mana”. Enquanto a minha mãe arrumava o disjuntor no andar de baixo, eu no andar de cima, acalmava a dupla. O Murilo, ensopado e enrolado numa toalha, chorava no meu colo desconsolado pela ausência da luz. O Mateus, por outro lado, tentava manter-se forte no escuro, mas não, é claro, sem arrumar um cantinho para sentar-se na segurança do meu joelho. Sugeri contarmos histórias enquanto a luz não voltava. O Murilo discordou, entre uma fungada e outra. Ouvindo a contrariedade do irmão, o Mateus sugeriu brincarmos de mímica, e eu achei graça: “Como podemos brincar de mímica no escuro, Mateus?” Pronto, agora os três caiam na risada.
A luz volta.
Frente à claridade, cada um retorna a seus afazeres. O Mateus voltou para o desenho dele, o Murilo foi tirar o sabão do corpo, e eu voltei pro meu quarto e para o Netflix. Sem perigo eminente, cada um deles podia seguir seu caminho de forma independente. Frente ao perigo, eu era essencial. A cena me jogou de volta para a minha infância. Quatro anos mais velha que o meu irmão Leonardo, algumas vezes na nossa juventude eu me peguei encarando a escuridão, tendo certeza de que eu não podia fraquejar. Lembro-me de uma época em que morávamos em um sobrado grande, que tinha um longo e assustador corredor até o banheiro, e de como o Léo sempre me acordava para acompanhá-lo durante o seu xixi no meio da noite. Eu nunca confessei para o meu irmão, mas eu devia ter mais medo do corredor que ele – mas por causa dele, eu ficava corajosa.
Como irmã mais velha de três meninos, eu não consigo minimizar a função deles no fortalecimento do meu caráter. O Leonardo, o Mateus e o Murilo são propulsores ativos da minha evolução. Sempre foram. Se dependesse só de mim, talvez eu não tivesse força ou muito menos coragem para encarar os inúmeros perrengues que a vida nos jogou. Mas esta é a mágica existente entre irmãos: como irmã mais velha, eu nunca me vi com escolha de desistir, e por conta deles, me tornei a mulher forte, determinada e destemida que sou hoje. Ou pelo menos alguém que quando precisa, finge bem todas essas características.
Para cada irmã ou irmão mais velho no mundo, existe um irmão mais novo desafiando a nossa fibra. Eu vi isso acontecer com o Léo, quando ele, por sua vez, se tornou corajoso pelo Murilo e pelo Mateus. A cada tosse medonha que os guris tiveram, o Léo, novato na medicina, acalmava a família frente ao desconhecido. Ninava os dois quando eles tinham suas cólicas. E muitas vezes, confortou seus pequenos corações enfrentado o escuro que precede o sono. O Léo deixou de ser unicamente o meu irmão mais novo, e decidiu ser forte, muito mais forte, como irmão mais velho dos dois pequenos.
Depois de muito tempo sendo irmã mais velha, eu finalmente entendi o que esse laço significava. Irmãos mais novos – hoje sei – não são apenas o link direto com o nosso passado, o nosso compromisso com a nossa história, o nosso cúmplice de crime. Eles são também um trampolim para o futuro. E essas etapas mudam a gente. Irmãos mais novos nos dão um preview do que é ser mãe ou pai de alguém. Ser responsável por outra vida além da nossa. Mostra-nos na prática a importância de dar exemplo, muito mais do que dar ordem. Nos forçam a comer legumes que a gente não gosta, afinal legumes são cruciais para o crescimento – eu, por exemplo, odeio beterraba. Mas como irmã mais velha, eu disfarço o nojinho pela raiz roxa e mando ver com cara de quem tá comendo pizza.
Ao lado dos nossos irmãos, a gente ensaia uma versão melhor da gente mesmo. Fuma escondido para não dar mal exemplo. Usa cinto de segurança, mesmo quando acha que “não precisa”. Na frente dos irmãos toda regra é importante. Foi com os meus irmãos e suas demandas, eu aprendi a deixar de dizer “já vou” e comecei a dizer “estou aqui”. Comecei a me preocupar com a violência, com o perigo de alimentos transgênicos e confesso, depois que virei irmã, eu nunca mais dormir sem pelo menos um olho meio aberto. Por causa dos meus irmãos, eu comecei a querer mudar o mundo pra melhor.
O mais engraçado é que entre um colo e outro, quando a gente acha que está dando força para eles, está na verdade tomando goles de coragem que eles nos oferecem. Sim, porque não dá pra não ser guerreira(o) por um irmão ou irmã. Nós somos os heróis da vida real. Porque mesmo no meio da escuridão, são os nossos irmãos que promovem a coragem e alegria que a gente precisa na luta pelo esclarecimento. E assim, a luz sempre volta.
*Imagem: Arquivo pessoal da autora