Fiz e refiz as contas. Somei os anos e tomei um susto: tenho menos dias para viver do que já vivi. Fosse um seriado de televisão, eu estaria no “Epílogo”. Preciso, urgentemente, decidir algumas coisas antes que chegue o eclipse total do sol da minha existência.
Decido que meus derradeiros passos seguirão rumo a tudo o que é belo, de boa fama e louvável. Admito minha carência de ternura, gentileza, suavidade, mansidão. Desejo, antes de cerrar os olhos, ainda ter coragem de dizer não a tudo o que é raivoso, intolerante, tendencioso, preconceituoso e estreito. Pretendo galgar a escada, cujo topo encosta no céu, com um sorriso menos tenso e com mais serenidade nos olhos. Quero entrar no céu como quem baila e não como quem marcha.
Decido que me manterei jovem. Estarei sempre aberto à possibilidade de negar o que já defendi, veementemente. Não lamentarei a minha imaturidade passada. Ela forneceu o chão essencial que me trouxe até aqui. Não me castigarei por ter pecado. Meus tropeços grandes e pequenos me ensinaram a discernir os vários tons de cinza que separam preto e branco. Não me cobrarei pelo que eu não podia dar naquelas circunstâncias. Menos preso ao passado, com menos idealização de um projeto humano de perfeição, posso arriscar no convívio com gente menos santa. Desejo ser amigo de gente que outrora desprezei.
Decido considerar as reivindicações de quem mais sofre como um imperativo. Por anos adiei vocalizar o que pensava sobre guerra, feminismo, direitos civis de LGBTs, inclusão de pessoas com deficiências, palestinos e indígenas devido a escrúpulos religiosos. Eu não queria “escandalizar”. Por isso calei. Com a idade, me sinto com liberdade de dizer que penso o contrário. Religiosos merecem ser melindrados no que lhes importuna mais: suas certezas. Estou convicto: amar requer flexibilidade; os misericordiosos, por definição, se contradizem; querer bem relativiza tudo. Vou escrever, falar e postar com mais liberdade. Ganhei a firmeza de que nenhuma escrita é definitiva e nenhuma norma, pétrea. O selo de concílio algum tem força de eternizar um dogma.
Decido abandonar o esforço de agradar quem me desdenha desde sempre. Dosarei altivez com humildade para que minha autoestima se adense em forma de liberdade. Quanta alegria em sentir-me livre do rancor dos incompetentes. Quanto gozo em não conviver com superficiais que imaginam tudo saber. Quanta independência em não precisar me proteger da arapuca dos puros.
Decido que desfrutarei mais das noites calmas, desprovidas de confetes e cheias de segredos. Aguardarei cada por do sol com o coração sereno. Transformarei aquele instante mágico, que os poetas dão o nome de crepúsculo, na metáfora da minha descida rumo ao horizonte eterno. Ansiarei ouvir, nos poucos pássaros que ainda voam por aqui, o ressoar das vozes dos amados que já não tenho por perto.
Cheguei à idade em que não preciso explicar por que viro páginas. A urgência de começar novos capítulos em minha existência tornou-se inadiável. A demanda de ser fiel, corpo, espírito e coração, a mim mesmo tem um peso eterno. Com luvas brancas, e com dedos cuidadosos, reinicio a minha história. Ela será breve, sem dúvida. Prometo, todavia, não deixá-la perder a intensidade.
(Ricardo Gondim)