Eu sei definir o limite do que chamo de casa e do que chamo de lar pelo barulho das cachorras latindo quando eu chego no portão. Por isso que hoje moro em uma pseudo-casa que não chamo de lar.
Lá, assim que eu chego, minha mãe vem e então eu me lembro de como é seu olhar de cansaço e culpa por tudo. Aos poucos, cada um dos objetos vai tomando reforço na minha memória, e vou então identificando novas coisas que surgem e coisas que desaparecem, onde foi parar a esteira, que panela nova é essa, cadê o vaso que estava aqui.
Meu quarto é o mesmo há anos. O mesmo. Nele eu passei a maior parte da minha infância, da minha adolescência, dos meus piores períodos, meus choros mais fortes, minhas alegrias mais intensas. Acordar de manhã com o barulho dos pássaros na árvore e a filha da vizinha nadando numa piscininha mil litros, com um tom azulado de luz entrando pela fresta da janela, não tem preço nenhum para mim, não tem o que pague, não tem o que supere minha calma.
Eu sei que estou em casa quando sento e ouço o vizinho ouvindo bem alto as modas de viola tão típicas de cidade interiorana, tão simples, tão roça, que me lembram a época em que eu chegava da escola às sete da noite em uma Besta, e ia para a casa da minha vó esperar minha mãe chegar. Eu descia e meu vô estava no bar cantando com seus compadres as mais fundas e profundas canções.
Hoje eu vivo sozinha. Eu construí meu padrão próprio de rotina, de (des)organização. Meu padrão de escolhas sou só eu quem faço. Ninguém me influencia a escolher. Todos me influenciam a ter. E então quando eu volto pra lá, eu sinto que já não sou mais parte disso. Eu não sei, eu me sinto deslocada.
Eu já vi, vivi, senti coisas que eles talvez nem imaginam que existem. Eles nunca vão entender o outro lado. Sei disso porque escuto e vejo coisas às vezes que antes pareciam tão comuns, e que hoje me soam como a mais estranha das coisas. Parece que eu desgrudei. Eu descolei. Eu nasci. Eu voei. Eu voei, e depois de ter voado eu percebo que nunca, nunca, mas nunca eu conseguiria voltar para aquela rotina que eu tive por tantos anos.
Voltar para casa é pousar meu voo. Voltar é como reviver uma parte de uma lembrança doce que ficou guardada em mim para sempre. Aves são criaturas curiosas que perambulam, conhecem, desconhecem, desbravam. Migram. Voam, mas no fim sempre voltam para sua terra original, pois é nela que tem a certeza de que seus filhotes crescerão saudáveis.
Meus filhotes talvez nem venham a conhecer a casa, a rotina, a vida, isso tudo que eu volto e reconheço às vezes. Porque um dia não mais existirá aquela casa, com aqueles objetos, com aquelas pessoas todas unidas, daquele jeito, naquela rotina, com aquelas piadas, aquelas manias. Um dia não mais existirá essa vida do interior. Isso tudo, configurado exatamente do jeito que é hoje, vai ser parte somente da lembrança de cada um de nós quatro.
E o que me dói é perceber que essa lembrança já passou a se concretizar em mim. Eu voei e no meu voo eu levei comigo parte disso tudo. Mas também deixei lá minha pegada. Minha raiz, minha fonte, meu ser. Não quero nunca deixar de voar, porém não quero nunca deixar também de voltar. Nem que seja para somente lembrar, já que a memória é uma das formas mais bonitas de retorno.