Eu sempre me questionei sobre como a intensidade afetiva que um dia direcionamos a momentos do nosso passado pode simplesmente se perder. Cidades, gostos, paixões e os trabalhos que já tivemos são voláteis e, após o polimento acarretado pelos anos que contam a nossa história, parecem cada vez mais distantes de nossas lembranças e sentimentos. Meses de choro por um amor perdido, algumas primaveras depois, podem não representar mais do que uma piscadela maliciosa em nossa atenção. O que pareceu, em outras épocas, um caso de vida ou morte pode ser representado, hoje, apenas em um sorriso maroto, cúmplice da aparente insignificância que o tempo dá a determinadas experiências.
Outros fatos, com importância real como a morte de alguém querido e familiar, alteram-se também após a troca das lentes com que os vemos. O tempo consola nossas dores enquanto nos mostra que a luz pode ser direcionada para momentos e lembranças boas ao invés de iluminar apenas o fim e a separação.
Se mudanças já acontecem no dia a dia, como em uma cena de ciúmes ou vaidade de ontem que, após uma noite de sono, mostra-se tola, desnecessária e fora de propósito, para onde vão as histórias e sentimentos de meses e anos que já vivemos?
Há na biologia de alguns animais um período chamado “muda”. Nele, quando o corpo torna-se grande demais para sua estrutura, acontece o processo de libertação da antiga morada. Isso acontece com alguns crustáceos, em alguns répteis que trocam de pele, com a cigarra… Você se lembra daquela história que a cigarra canta até explodir? Pois é, nós também passamos por “mudas”, temos nossos limites, crescemos além do que algumas fases podem suportar e transformamo-nos, trocamos de pele, iniciamos novos ciclos de existência. Abandonamos carcaças que já não nos pertencem mais.
Percebemos também, aos poucos, que memória afetiva é coisa seletiva e que guarda só o que nos é mais importante. Ela não é necessariamente dependente da intensidade emocional com que vivemos o que nos aconteceu no passado ou do tempo que demoramos para perceber algumas verdades.
Passamos por ciclos de vida, temos contatos próximos e até íntimos com diversas pessoas e, alguns anos depois, aquilo parece tão distante, é imagem presa em fotografia, lembrança desafiando as imperfeições da memória.
A neuropsicologia afirma que lembranças do passado, mesmo quando evocadas em épocas diferentes, são capazes de ativar regiões afetivas de nossa mente e nos fazer sentir coisas com intensidade similar à epoca do acontecido. Isso vale tanto para os sentimentos profundos de afeto e vínculos reais como para eventos traumáticos. Mas, e se elas não forem mais tão importantes? Quantos de nós estamos prontos para admitir que determinadas coisas não nos encantam como antes? Que o amor e admiração acabaram no casamento ou que aquele emprego um dia tão sonhado hoje só trás sofrimento? Quantas juras de amor antigas já não dizem mais nada? Quantas vezes nós somos realmente capazes de admitir e reconhecer a força das trancas que fecham ciclos anteriores, daqueles momentos que se foram e estão onde não mais se pode voltar?
É preciso reconhecer que a beleza alaranjada do outono só surge após a morte das folhas. É necessário entender que virão novas folhas, mas, embora parecidas, elas serão protagonistas e cúmplices de outras histórias, nunca mais das histórias anteriores.
Nossos ciclos de vida permitem a visão de um mesmo cenário sob diferentes ângulos. Permitem o foco em variáveis diferentes. E, se ontem as rosas eram amarelas e hoje são vermelhas, quem saberá de suas cores no futuro?
É fato que nunca mais teremos os olhos de uma criança, mas podemos buscar a pureza de um olhar infantil que ficou dentro de nós. Nunca mais viveremos um primeiro amor, mas podemos revisitar os sentimentos da construção e do encantamento em novas relações.
Nossas vidas são feitas de desenhos na areia que, apesar de seu valor momentâneo, podem ser apagados pela passagem do mar. Outros, com formas mais sólidas, quando levados, mergulham em profundezas e são tesouro escondido que pode um dia, no acaso ou em expedições planejadas, ser redescoberto.
A maturidade consiste em aceitar os fins e as mudanças do processo sem perder o encanto pela jornada. É estarmos dispostos a fechar cada ciclo e, com novas roupas, vislumbrarmos as possibilidades vindouras. É guardar na memória a essência do que foi mais importante enquanto se percebe que o sentido da vida é seguir, mas sem nunca poupar os sorrisos marotos e as piscadelas maliciosas que formam a pessoa que hoje somos e que, amanhã, será diferente.