Francisco Azevedo, em “O arroz de Palma”, conta a história de uma família cheia de virtudes e defeitos, tradições e saudades. Lá pelas tantas, Antônio, o personagem central, se depara com os guardanapos que iriam servir ao almoço de família. A cena é memorável, pois o velho Antônio segura aqueles pedaços de pano e lembra toda uma vida. Saudoso, diz: “Como é que simples guardanapos são capazes de trazer tanta recordação?” E continua: “Porque fizeram história. Festejavam a vida e pronto. A data, religiosa ou pagã,era pretexto. Podia ser Páscoa ou carnaval. Esses guardanapos têm alma. Aliás, todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime afeto. As coisas também aspiram a uma existência sensível”.
Assim é. Cada família tem sua história, e nessa história, qualquer objeto simples ou trivial pode se tornar uma relíquia. Porque guardaram memória, e é isso o que torna qualquer coisa, algo especial.
Outro dia, no trânsito, parada no sinal, divaguei diante da placa do carro à minha frente. O número era 2774. Me fez lembrar nosso primeiro telefone, o 2774 da rua Conquibus, no sul de Minas. A partir daí, meu pensamento voou àquela casa, à mesinha onde ficava o telefone ( com fio!), à lembrança da preguiça que se apoderava de mim e meus irmãos quando tocava ( “Eu não atendo!”, “Eu disse primeiro”, “Da última vez fui eu!”), e à tanta coisa capaz de caber em quatro simples números _ uma relíquia.
Então essa semana recebi um presente.
E presente é um troço difícil. Dependendo da coisa, pode gerar mais confusão que gratidão ( lembro agora de uma historinha, outro caso de família, em que o primeiro sutiã foi dado a uma mocinha e em vez de agradar, provocou náuseas, pois a menina não estava preparada pra crescer _ ainda!). Assim, o que quero dizer é que dependendo do presente _ da relíquia _ pode haver mais desconforto que agradecimento, e é preciso cuidado…
O fato é que em certos lugares não se deve levar pai e mãe. Cama é uma delas_ talvez a principal. Então fica vetada a doação de roupas de cama _ usadas por nós_ aos nossos filhos. Porque, por mais que seja uma relíquia_ bordada à mão, com mais de trezentos mil fios por polegada e caimento perfeito_ ali reside uma história. E herdar essa história na forma de um lençol, tem seu ônus também. Mas isso vai de cada um. Eu, particularmente, herdei uma sensibilidade aguçada de algum ancestral desajustado, e isso me põe em maus lençóis _ literalmente!_ de vez em quando.
Porém… ainda assim, desejo herdar aquele lençol. Como peça afetiva, que não se usa pensando na utilidade, mas é guardada com amor.
Talvez um dia, quem sabe, receba o presente novamente. Uma relíquia lembrando mãe e filha sentadas na cama, naquela casa da rua Conquibus, a do 2774, e eu muito menina ouvindo-a me contar sobre o bordado da Ilha da Madeira. Isso me dá saudade. Da nossa intimidade. Da menina atenta que fui e que sempre a admirou. Lembrar essa conversa, que acontecia de tempos em tempos (ela sempre se esquecia que já havia me mostrado o bordado e contado sobre as bordadeiras da Ilha da Madeira: “Uma ilha, lá em Portugal…”) é trazer alento aos meus dias e apaziguar minhas inquietações.
Ontem aconteceu de novo: “O lençol de linho, bordado pelas bordadeiras da Ilha da Madeira, uma ilha lá em Portugal… agora é seu”. Confesso que fiquei surpresa. Não pelo presente, que é simples, delicado e bonito, mas pela orientação de que a partir de agora deveria usá-lo seriamente, como roupa de cama, para cobrir e vigiar meu sono. Me pegou desprevenida, não se pode misturar as coisas, e eu tenho a memória muito boa e viajante, ela vai tanto pras nossas conversas sobre o bordado (“Olha o avesso, é perfeito…”), quanto ao fato de que foi testemunha do amor de meus pais.
É por isso que devemos ser cuidadosos com as relíquias. Elas carregam histórias, cheiros, tato, paladares e visões. Foram testemunhas da dor, do amor, da alegria e tristeza, e eu prefiro guardar somente o que convém: nossa intimidade numa casa só de homens, as conversas acerca de tantos assuntos femininos, as mudanças que estariam por vir e a felicidade verdadeira de compartilhar instantes perfeitos.
Nunca fui à Ilha da Madeira, “uma ilha de Portugal…”, mas carrego essa ilha dentro de mim. Na voz pausada de mamãe, que falava com aquele tom solene de quem deseja compartilhar algo valioso e me mostrava o avesso do bordado _ “sem nenhum errinho…”, me fazendo imaginar aquelas bordadeiras portuguesas caprichando no lençol.
Sua riqueza sempre foi essa: O tempo disponível e a capacidade de estar ao meu lado, calma e amorosa, mesmo nos piores momentos.
Então sim, eu valorizo o enxoval, não pela utilidade _ cobrir a cama, acariciar quem dorme_, mas sim como recordação de um tempo bom, numa casa cujo telefone era 2774 e tinha um lençol de cor amarela com o bordado azul perfeito… feito pelas bordadeiras da Ilha da Madeira.
Na minha frente eu vejo o mar e na frente do mar está a ilha…
Caramba, seus textos tem o dom de me fazer chorar, me vi no texto, só que no meu caso, eu e meu irmão fomos criados pela minha vó e era com ela, em dia chuvoso, que ficávamos na janela vendo o tempo passar, a chuva molhar a grama, ela me contando que os trovões são porque São Pedro estava arrastando os móveis do céu pra lavar tudo. Enfim, esse texto me jogou direto no passado, hoje estou casada, mais ainda vejo minha vó quase todos os dias, mais a saudade da inocência e das nossas conversas é muito forte em mim, e hoje quando comecei a ler esse texto meus olhos encheram de água, pois a vida nos leva para caminhos diferentes, mais se eu pudesse um dia voltar no passado (não só em memória) eu voltaria exatamente para os dias chuvosos!!!! Gostaria de agradecer por você e pelo seu blog, você é brilhante Fabíola Simões, realmente consegue expressar o que sente entrelinhas… Abraços
Luana: Obrigada pelo carinho! Que linda sua história, quanta sensibilidade! Fico feliz que tenha se identificado, e mais ainda, pelo comentário que veio acrescentar ainda mais à esse texto! Abraço grande!
Que lindo, são essas lembranças sutis e delicadas a maior riqueza que podemos ter.
Me lembro com grande carinho da casa da minha vó, da comidinha caprichada, a vó fazia manjubinha com arroz com tomate.
Deixava os netos fazer bagunça e não queria que a nossa mãe chamasse a atenção.
Vozinha mais fofa do mundo, agora mora no céu.