Depois de um dia barulhento, vivendo do lado de fora e distraindo-se de si mesma, finalmente chega a noite e, com ela, o silêncio. O silêncio necessário para voltar-se para dentro.
Enquanto as luzes se apagam e todos dormem, ela entende que já não adianta mudar de posição na cama; a culpa não é do colchão, nem do calor que chega, nem da respiração pausada e lenta a seu lado. Sabe_ por hábito_ que será mais uma noite insone e levanta-se devagar para não despertá-lo.
Do lado de fora, caminha pelos cômodos. Entra no quarto do filho e aquela paz lhe comove. Senta-se na cama, acaricia-lhe a face, sussurra palavras doces e de repente chora. Chora por culpa, necessidade, constatação.
Constatação de que o tempo está levando a infância, deixando fluir a pureza, evaporando a ingenuidade. “O menino está crescendo”… ela pensa, enquanto pensa que amanhã terá mais um dia cheio longe dele, longe da eternidade que a infância representa, como sonho que só se realiza uma vez e perdura na memória pela vida afora. Ela se dói inteira e tem vontade de acordá-lo, abraçá-lo, de jogar mais uma vez aquela partida de vôlei que ainda há pouco ela própria interrompeu com suas manias de regras e rotinas. E se pergunta “pra que?”
Então beija-o novamente e fecha a porta do quarto cuidadosa. Quer se distrair, mas o domingo está terminando com a meia noite que chega_ enquanto seu interior brinca de inadequação.
Sente que nada se encaixa, nada faz sentido, tudo é um erro. De madrugada os fantasmas se divertem às suas custas, ela se pune e lembra o que a terapeuta disse na última sessão: ” Por que faz isso com você? Por que continua se punindo?” e então corrige a expressão e tenta ser mais dócil e tolerante com suas falhas tão comuns, tão humanas.
Olha-se no espelho e tem compaixão pela mulher refletida. Entende seu olhar cansado e tudo o que esse olhar traz. Marcas duras dos últimos anos e situações difíceis dos últimos dias.
Então de repente gosta dela. Entende suas decisões_ nem sempre certas_ mas possíveis. A perdoa e deseja que seja feliz. Ah, como deseja que seja feliz…
Mas é tão difícil abandonar velhos padrões!
Quer, acima de tudo, respeitá-la; para que assim, recupere pelo menos o sono.
Decide começar de novo. A partir de amanhã não _ é tempo demais. Enxuga as lágrimas com cuidado, serve uma xícara de chá _embora não goste de chá_ mas acredita que é assim que as pessoas sensatas e com amor próprio fazem; acende o abajur da sala e acaricia os pés no tapete. Pela última vez chora para lavar o coração e lubrificar os olhos.
Olha as paredes da casa que tanto desejou e agradece por ser feliz, por estar em casa, pelo encontro consigo mesma.
Promete ser fiel ao seu coração, aprender a desejar, ouvir mais seus instintos_ o que sempre lhe moveu_ sem culpa, sem remorso, só amor.
Enfim adormece… sabendo que daqui a pouco haverá mais barulho_ o que a distrairá de si mesma novamente…
Imagem de capa: Sensay / Shutterstock
seu interior brinca de inadequação. vou pegar pra mim está expressão, tá? na falta eu tomo, como ela com insonia, tomou a alegria da respiração do filho para viver por mais um dia.
Que linda interpretação… Obrigada!
“Olha-se no espelho e tem compaixão pela mulher refletida. Entende seu olhar cansado e tudo o que esse olhar traz. Marcas duras dos últimos anos e situações difíceis dos últimos dias.”
Às vezes é assim que me sinto, mas estou aprendendo a olhar no espelho tbem e dizer que me amo e mereço a felicidade…