Ontem terminei de ler o premiado “O sentido de um fim”, de Julian Barnes. O livro fala do tempo e da memória, e de como certas lembranças aproximadas podem ser deformadas em certezas no decorrer da vida.
O narrador do livro é Tony Webster, um sessentão aposentado que, frente a um enigma, volta ao passado, relembra fatos esquecidos, revive a dor da perda de um amigo, tenta reparar seus erros e volta a sentir-se como um garoto de vinte anos reencontrando a primeira namorada.
O personagem volta quarenta anos na sua história e se depara com o jovem que foi, percebendo que a memória nem sempre é uma fonte confiável_ “o tempo não funciona como um fixador, e sim como um solvente”.
O livro é rico em diálogos interiores e dá vontade de lê-lo com um bloquinho de anotações na mão, tamanha a riqueza de divagações e ambigüidades interiores_comuns a todos nós_ vivenciadas.
Certos diálogos me fizeram lembrar o anti herói Holden Caulfield, do memorável “O apanhador no campo de centeio”, como na frase: “Uma parte minha teve vontade de roubar umas toalhas ou de andar pelo tapete com o sapato sujo de lama”.
Através de seus pensamentos somos levados a rever nossas vidas ou aquilo que acreditamos ser nossa história, aquilo que vivemos e editamos através do tempo: reformamos, ajustamos, enfeitamos, arrumamos. E sem perceber acreditamos no enredo que criamos.
Mas nem sempre somos fiéis aos fatos. Nem sempre somos justos com aqueles que estiveram ao nosso lado. Em nossa versão da história sempre somos mártires, corajosos, humildes, guerreiros, fiéis, leais… E de tanto contarmos a mesma história várias vezes, acabamos acreditando nela. Mas essa é só nossa versão, editada e camuflada conforme nossas necessidades de proteção, atenção e afeto.
O tempo deforma as certezas mas também traz de volta testemunhas de nosso passado e com ele a lembrança de quem fomos e do que amamos. Relembrando Verônica_seu primeiro amor_ Tony Webster diz: “Para a maioria de nós, a primeira experiência de amor, mesmo quando ele não dá certo_ talvez especialmente quando ele não dá certo_ promete que ali está a coisa que valida, que justifica a vida”.
É assim que gostamos de lembrar os primeiros afetos, os amigos da juventude, o passado_ embora não hajam documentações que provem o que realmente sentimos na época.
Porém, a verdade não é de fácil digestão. E o fato é que mesmo sem intenção, ao longo da vida causamos dor, provocamos traumas, abrimos feridas em quem amamos. E poucas vezes reconhecemos isso, porque a memória só se fixa naquilo que nos agrada, no que é fácil assimilar. Editamos nossas vidas e damos um jeito de esquecer nossos pecados, fraquezas, insalubridades. A história completa_sem rasuras ou edições_só existe de fato num lugar do tempo, naquele hiato de fita magnética que não queremos rebobinar, mas que existe fragmentado de diversas formas na memória dos que partilharam o passado conosco.
“Quanto mais longa a vida, menos são os que ainda estão por perto para nos contradizer, para nos lembrar que nossa vida não é nossa vida, mas apenas a história que nós contamos a respeito da nossa vida. Contamos para outros, mas_principalmente_ para nós mesmos.” (Tony Webster, em “O sentido de um fim”)