Num dos episódios mais bonitos da série The Crown (T6 E8), a irmã da rainha relembra uma festa que ocorreu há mais de 50 anos, no hotel Ritz. Segundo Margaret, enquanto os ricos e bem nascidos jantavam sob a luz de candelabros de cristal, ouvindo música ambiente e o tilintar dos talheres de prata, Elizabeth foi atraída para uma festa alternativa que ocorria nos porões do hotel. Lá embaixo havia música alegre, danças, cerveja barata e muita alegria. Ao contrário dos convidados da festa do andar de cima, os festeiros do porão eram gente simples, americanos provenientes do Harlem, um gueto em Nova York. Gente sem patente nem origem, comemorando o fim da guerra. A futura rainha desceu as escadas e dançou livremente no meio do povo. Ali ninguém sabia quem ela era, não havia protocolos a seguir. Ela se misturou aos outros e nunca foi tão feliz. Margareth a encontrou dançando, rodopiando, bebendo… e, ao vislumbrar a cena, se comoveu com a alegria genuína e inédita da irmã. Na velhice, comentou: “Quando me lembro daquela noite penso que não sei quanto da sua personalidade você teve que reprimir para se tornar rainha”
A frase pode ser um soco no estômago. Para Lilibeth e qualquer um de nós, pobres mortais. Quanto de nossa personalidade temos que reprimir todos os dias para ser quem somos? Quanto de nossa essência precisamos não deixar vir à tona para cumprir o que se espera de nós? Quanto de nós mesmos fica submerso para desempenharmos os papéis que nos foram designados?
Há dança, música e cerveja gelada dentro de você. Por que você se priva de tirar os sapatos, cantar alto e esvaziar os copos se é isso que o torna mais feliz? Por que reprime o baile, a alegria e a liberdade? Por que acredita que não é possível recomeçar, transgredir ou sorrir? Por que é tão difícil assumir quem se é de verdade?
Esquecemos que somos livres. Preferimos culpar as convenções sociais, a reputação que adquirimos, a idade que temos, os contratos que assinamos, os papéis que desempenhamos. Ignoramos a possibilidade de conciliar cumprimento de obrigações com descontração; andar na linha com chutar o balde de vez em quando; relacionamento sério com preservação da individualidade; prudência com insanidade; culpa com absolvição.
Quem é você de verdade? Você sabe? Encontrar a si mesmo embaixo de tantas camadas nem sempre é fácil. É preciso muito autoconhecimento e coragem de se enfrentar para ousar desconstruir-se, desabrigar-se, desnudar-se. O saldo é viver com mais autenticidade e espontaneidade, infringindo regras sem sentido e limites pré-fabricados.
Qual o sentido de viver se privando da felicidade em prol de um rótulo? Qual o propósito de se abster da alegria a favor de uma idealização? Qual o significado de atuar como alguém que você não é, em benefício de ser aceito? Qual a necessidade de renunciar a si mesmo em prol de ser bem quisto por alguém que não aprova sua verdadeira essência?
Troquemos cautela por ousadia, discrição por espontaneidade, autocontrole por impulsividade, andar na linha por enfiar o pé na jaca. De vez em quando é necessário deixar nossos rumos ao sabor do vento. Ousar romper o fio que nos liga à escassez e arrematar o nó com a porção de loucura que nos habita.
Quanto de sua personalidade você teve que reprimir para se tornar quem você é? Quanto de si mesmo você abandonou para ser aceito? Até que ponto você chegou, somente pelo desejo de agradar e de se enquadrar? Valeu a pena?
Reféns das boas maneiras e das máscaras sociais, abrimos mão da autenticidade e espontaneidade. Reféns da preguiça de virar a mesa, nos acomodamos em rotinas previsíveis e comedidas. Reféns da necessidade de nos adequarmos, reduzimos a vida a uma série de critérios seguros e absolutamente previsíveis.
Pode ser que amanhã o mundo acabe. Aqueles que você quis impressionar, te amaram de verdade? Valeu a pena falar baixinho, manter os olhos baixos, não aceitar aquele convite para dançar? Valeu a pena o medo, o freio, a repressão?
A vida melhora demais quando você aprende a expressar quem você é de verdade. Quando perde o medo de colocar limites e falar o que pensa. Quando autoriza o instinto de mergulhar de cabeça na vida, sem frear o riso solto frente ao primeiro olhar de desaprovação. Quando aprende que não precisa anular sua personalidade nem diminuir a velocidade de seus sonhos em prol de uma imagem exemplar. Há drama maior que enxergar no espelho alguém que você não reconhece?