A liberdade custa caro. Perca os anéis, os brincos, até os sisos. Mas não se perca de você.

Ela já havia deitado naquele peito um milhão de vezes; mas, naquele momento, a acolhida tinha sido diferente. Queria permanecer ali, estática, imóvel. Que o tempo congelasse e cessassem todas as dores, ausências, saudades, preocupações. Temia que, acaso se mexesse, o encanto pudesse se quebrar – ele acordaria, e ela perderia o instante perfeito, pacífico, reflexivo. O instante que pertencia somente a ela. A cena já havia se repetido infinitas vezes; mas, naquela noite, os pensamentos vagavam em outra esfera – distante, distinta. Compreendeu, então, o quanto havia mudado.

A vida lá fora era convidativa, mas também assombrosa. Vivia flertando com o perigo, desafiando armadilhas, debochando do risco, cortejando a incerteza. Era assim porque sabia que tinha para onde voltar. Ele a ancorava ao chão, e por isso ela se permitia voar. Ainda não tornara-se forte o suficiente para bancar a queda livre

sem pisar nos freios. A liberdade consistia em sentir o vento no rosto, mas também na certeza de que, em algum lugar, haveria um abrigo para onde retornar.

Por muito tempo evitara o frio na barriga. Recusava o brilho no olhar e tinha medo de se atirar. Rejeitava a alegria e andava de mãos dadas com a covardia. Era séria, recatada, discreta e modesta. As roupas eram fechadas, sua sobriedade afastava quem quisesse se aproximar. Não tinha o riso frouxo, e faltava ginga e jogo de cintura para se perdoar. Não se acolhia, não se pegava no colo, não se permitia. Era avarenta consigo mesma, não ousava desejar. Mas então viera o susto, o arrebatamento, a vida desafiando-a a se jogar. Até quando ela iria recusar? Tinha despertado. Não podia mais se boicotar.

Já não tinha mais como voltar. Estava no meio do caminho, e sabia que, se se permitisse, muito mais haveria. Precisava ser firme o bastante para não recuar. Para aceitar a vida inteira, com suas dores e delícias, riscos e tombos, encantos e assombros. Mas ainda não se sabia forte. Imaginava-se frágil, carente de um peito onde repousar, uma casa para onde pudesse voltar, um bilhete que assegurasse seu regresso ao lar.

Quando criança, as viagens a assustavam. O navio a aguardava no porto, mas ela preferia ficar em terra firme, vendo-o se afastar. Agora a vida se apresentava como o navio. Ficaria no cais, na noite escura, apenas observando a luz da embarcação se distanciar? Ou arriscaria remover as âncoras de si mesma, rompendo os laços do temor, aliviando o aperto do colarinho, perdoando-se por não se culpar?

Ainda não compreendia tudo, nem sabia até onde poderia chegar. Mas algo havia mudado, e dessa vez não se sentiria endividada ou culpada por tudo aquilo que desejava alcançar. Já não bastava mais a vida que caía como gotas de chuva na vidraça enquanto ela permanecia parada, estática, observando através da janela. Queria o cabelo molhado, poças d’água para pisar, frio dilacerante com o vento cortante que chega sem avisar.

Naquele momento, entendeu. Era inaceitável doar-se a conta gotas a si mesma. Era injusto não permanecer ao seu lado. Era inadmissível ser melhor com os outros do que consigo mesma. Era inaceitável esgotar sua energia e ficar com tão pouco.

Então a liberdade era isso. Começava como uma dança que se dançava sozinha, de olhos fechados, escutando a música que nascia no recanto mais profundo de si. Alheia aos comentários, indiferente às críticas, abstraída do autojulgamento. Permitindo-se queimar até recuperar as forças, curando a si mesma e às mulheres que a antecederam. Desejosa de não se entregar a nada nem a ninguém somente pelo desejo de agradar, mas decidida firmemente a nunca mais se abandonar.



LIVRO NOVO



Fabíola Simões é dentista, mãe, influenciadora digital, youtuber e escritora – não necessariamente nessa ordem. Tem 4 livros publicados; um canal no Youtube onde dá dicas de filmes, séries e livros; e esse site, onde, juntamente com outros colunistas, publica textos semanalmente. Casada e mãe de um adolescente, trabalha há mais de 20 anos como Endodontista num Centro de Saúde em Campinas e, nas horas vagas, gosta de maratonar séries (Sex and the City, Gilmore Girls e The Office estão entre suas preferidas); beber vinho tinto; ler um bom livro e estar entre as pessoas que ama.

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