Quando o suposto “defeito” fica na parte de fora da gente, aprendemos a disfarçá-lo; com cortes de cabelo, maquiagem, roupas que nos favoreçam, filtros fotográficos e o que mais estiver ao nosso alcance para que possamos exibir ao mundo uma imagem mais aceita e “curtível”.
Já quando a incongruência vem de dentro, do nosso caráter ou do nosso DNA afetivo, aí a coisa fica um pouquinho mais complicada. Para nossas distorções internas não há filtro, roupa de grife ou tratamento estético que dê jeito.
O mais estranho é que, talvez, seja exatamente essa maior dificuldade encontrada o que nos torna tão especialistas em camuflar nossas partes internas mais densas, pesadas, estranhas e rejeitadas. Por exemplo, já reparou como todo mundo se sente vítima da inveja, mas ninguém assume ser invejoso? Essa conta simplesmente não fecha; sobra “x”, sobra incógnitas, sobra dividendos e zeros depois da vírgula.
E a explicação para essa transgressão matemática é muito simples: a nossa configuração interna não é exata, não flutua segundo a orientação dos maravilhosos (e assustadores) algoritmos, não há fórmula racional possível para equalizar nossas demandas emocionais, nossas batalhas diárias contra nosso mais terrível inimigo: a falta de autoconhecimento.
Somos completos estranhos para nós mesmos. Essa personagem que acorda conosco dentro de nós apenas imagina quem seja essa outra personagem que a gente vê no espelho, e vice-versa. Somos, pelo menos dois tentando fazer dar certo um casamento indissolúvel.
O fato é que passamos a vida julgando os outros, querendo os outros, desejando os outros, rejeitando os outros, perseguindo os outros e descartando os outros, para tentar escapar do nosso intransferível destino: somos completamente incapazes de sentir por nós mesmos todas essas complexas paixões de aproximação e desapego.
Então, para não termos de encarar de frente esse desafio enorme que é desencavarmos esse fóssil humano de nós mesmos, soterrado sob inúmeras camadas de poeira, pedra e lágrimas, seguimos fingindo que está tudo bem.
Arranjamos jeitos de doer menos, nos cercamos de crenças – religiosas ou não – para nos acalmar a angústia diante da nossa indisfarçável imperfeição. Seguimos recitando pequenas ladainhas, invocando algum deus ou sábio, a fim de explicar ou abençoar nossas pretensões à uma suposta santidade ou – ainda mais ambiciosos – a fim de alcançar uma coisa chamada “paz interior”.
É companheiro, só a gente mesmo para entender o quão complexo, custoso e desafiador é carregar-nos todo santo dia para cima e para baixo. E haja academia, terapia, creme hidratante, plástica capilar, fruta orgânica e receitas sem carboidrato para caber em tão descabida expectativa.
Quem sabe não esteja na hora de visitarmos aquele porão esquecido, frio e escurinho. Abrir aquele armário secreto, trancado a sete chaves e dar uma boa olhada naquele esqueletinho que padece ali, abandonado e sem afeto.
Imagine cada um de nós andando por aí com seu podre revelado… Talvez, de início se instalasse o caos. Porque desacostumamos demais da verdade. Porque no começo, insistiríamos em afirmar que o esqueleto do outro é muito mais temível do que o nosso.
Entretanto, passado um tempo… acabaríamos compreendendo que não há uma variedade assim tão grande de defeitos. Nossos horrores internos são, na verdade, muito mais parecidos do que a nossa vitrine inventada e mantida com tanto custo. Reveladas nossas entranhas esquisitas, acabaríamos tirando um peso enorme do peito e das costas e descobriríamos que nossas faltas, assim como nossos excessos, são apenas casquinhas de feridas que ainda não aprendemos a curar.