Imagem de capa: Amir Bajrich/shutterstock
Título original: Monjolos e carros de boi
Minhas netas: Os animais, para sobreviver, precisam apenas de uma coisa: os seus corpos.
Os corpos dos animais – cada um deles é uma caixa de ferramentas onde estão guardadas as ferramentas de que eles têm necessidade para sobreviver. Dentes, garras, carapaças, escamas, asas, ferrões, venenos, disfarces, fedores, perfumes, cascos…
Os gambás são fedidos: com isso eles afastam os inimigos. O bicho-pau se parece com um pedaço de pau seco.
Com isso ele se esconde dos pássaros que gostariam de comê-lo.
Os castores têm dentes enormes e afiados, verdadeiros formões que usam para cortar árvores para fazer as represas em que vivem. Há um besouro terrível, chamado “bicho-serrador”.
Pois o danado, de noite, corta galhos de árvores com a precisão de uma serra. E os vagalumes possuem lâmpadas que se acendem durante a noite, para atrair as namoradas.
Nenhum pássaro é louco de engolir uma taturana. Lindas, verdes, vermelhas, marrom, abóbora, são fogo puro.
E a cascavel, cobra pacífica, adverte aqueles que estão se aproximando com o chocalhar dos guizos que têm na ponta do rabo. Mas esse animal chamado homem, ao contrário, tem uma caixa de ferramentas muito pobre… Se os homens tivessem de se virar só com o seu corpo, há muito teriam desaparecido.
Mas como eles não queriam desaparecer, eles se puseram a pensar. E, com essa ferramenta chamada pensamento, eles se puseram a inventar coisas para melhorar o seu corpo deficiente.
Cada invenção é uma melhoria do corpo. O que é uma rede de pescar? É uma melhoria das mãos que, sozinhas, não conseguiriam agarrar os peixes. Uma rede é uma mão com 1.000 dedos!
E o que é um cesto? É uma melhoria dos braços e das mãos que, sozinhos, não conseguiriam carregar mais que 6 ovos. Com uma cesta eu posso carregar 50 ovos! O fio dental é uma melhoria da unha.
Aquele pedaço de carne entre os dentes, irritante, a unha não chega lá. Primeira melhoria da unha: um pauzinho de ponta, palito. Mas mesmo o palito não consegue cutucar as carnes mais fundas. Aí o pensamento inventou o fio dental.
Pense no seu corpo nu: todos os objetos que não são o corpo e que estão ao seu redor e que ele usa têm o nome de tecnologia.
A tecnologia é uma extensão do corpo, uma melhoria do corpo. O corpo inventou a tecnologia para viver melhor, para sofrer menos, para fazer menos força… Por isso os homens inventaram os monjolos…
Você não sabe o que é um monjolo. Nunca ouviu falar. Vou explicar. Tudo começou quando um homem percebeu que havia coisas duras demais para os nossos dentes.
O milho maduro, que os dentes dos cavalos trituram sem dificuldade, se um homem tentar fazer como os cavalos fica desdentado. Aí o pensamento pensou um jeito de ajudar os dentes: transformar o milho em farinha.
O pensamento pensou e teve a idéia de quebrar o grão com uma pedra. Funcionou. A pedra quebrou o milho mas o milho se espalhou por todos os lados e foi um trabalhão ajuntar tudo.
Aí a inteligência pensou que, se o milho estivesse dentro de um buraco num pau, ele não se espalharia quando batido. Só que, para se bater no milho, no fundo de um buraco num pau, não era possível usar uma pedra.
A inteligência pensou que o mesmo resultado da pedra podia ser obtido com um pau comprido que entrasse dentro do buraco.
Assim foi inventado o pilão. Mas ficar batendo no milho com o pau dava uma canseira…
Aí houve um homem, gênio maior que o de Einstein, que imaginou se não seria possível pôr a água para trabalhar para a gente…
Ele conhecia o poder da água, dos seus banhos nas cachoeiras. O problema era: como transferir a força da água das cachoeiras para o pilão.
E foi então que, num estalo de gênio, esse homem bolou uma máquina, o monjolo. Toda máquina é uma coisa que transfere a força de um lugar para outro.
O monjolo se parece com uma gangorra: é um pau grosso que oscila sobre um eixo. Uma das pontas dessa gangorra, pau grosso, é cavada por um artesão, pode ser a machado, a fogo, a enxó, formando um buraco, um vazio, colher imensa.
Na outra ponta, fincado na madeira da gangorra, está o pau do pilão. E, debaixo dele, o pilão onde se põe o milho. Como é que funciona? Essa máquina é construída debaixo de um cocho por onde a água corre. A água do cocho cai no buraco da colher.
Quando a água enche o vazio, a gangorra se desequilibra pelo peso da água, e se inclina para o lado do peso maior.
Mas, ao se inclinar, a água que enchia o vazio escorre. O vazio fica de novo vazio, leve. Novo desequilíbrio. A gangorra cai na direção da extremidade do monjolo onde está preso o pau do pilão.
O pau grosso da gangorra, pesado, desce com força. e o pau do pilão bate no fundo do pilão, quebrando o milho… E assim o monjolo trabalha a noite toda, enquanto os homens dormem. Trabalhando, o monjolo canta uma música.
Quando ele se levanta dá um gemido de dor; ai! E quando ele bate no fundo do pilão é como barulho de um bumbo: ai – bum, ai – bum, ai – bum. O “ai” é longo, lamentoso, sofrido.
O “bum” é rápido e seco. Canta o monjolo noite e dia. O milho duro vira fubá macio. O fubá, no forno, vira bolo. Comer o bolo: que alegria!
Geme e canta o monjolo, fazendo música. Ao longe, canta um outro músico, o carro de boi! Vem carregado de lenha, carregado de milho… O carro de boi era uma alegria para a meninada.
A gente corria atrás e subia nele, prá andar um pouquinho. Quem não tem automóvel anda de carro de boi. Era fácil subir. Andava muito devagar. Boi não corre. Quem corre é cavalo e até há os hipódromos, lugares onde acontecem corridas de cavalos. Mas nunca ouvi de corrida de bois.
Há, na Espanha, um costume cruel e sangrento, que a bondade e a razão há muito deveriam ter abolido: as corridas de touros. Touradas.
Aqueles touros correm e ai do toureiro que se distrair! Mas touro não é boi. Boi foi touro. O touro, fortíssimo, não serve prá puxar carro porque touro tem vontade própria. Ele faz com a sua força aquilo que ele quer.
Os homens compreenderam que, para usar a força do touro era preciso tirar dele sua vontade. Os homens então castraram o touro, tiraram seus hormônios de macho que corria atrás das fêmeas. E os touros ficaram fortes e obedientes.
Por isso eles andam tristes, olhando prá baixo. E os homens puseram a força do boi para puxar carro da mesma forma como puseram a força da água para bater o monjolo. Tecnologia é isso: usar uma força que não é nossa para realizar os desejos que são nossos.
Quando os homens sentiram que as mãos eram pequenas para carregar as coisas eles inventaram as cestas. Quando perceberam que as cestas eram pequenas para carregar muitas coisas inventaram o carro de boi.
O carro é uma melhoria das mãos. Mas não só isso. Carregar uma cesta cheia cansa os braços. Cansa as pernas. Cansa os músculos.
Carregando as coisas no carro o corpo descansa. Ao invés do corpo do homem, os corpos dos bois. Mas melhoria maior ainda para as pernas são as rodas.
A roda foi uma das mais importantes descobertas da história dos homens. Quem será que inventou a roda? Como será que a idéia da roda apareceu na sua cabeça? A idéia aparece antes da invenção. O homem que fez a primeira roda foi um gênio de inteligência.
O carro de boi é guiado pelo carreiro que caminha ao lado dos bois. Na mão ele tem uma vara comprida com um prego na ponta: é o ferrão.
Com o ferrão ele espeta o boi que está fazendo corpo mole, ou o boi que está indo na direção errada. E os bois obedecem. É impossível não obedecer as ordens da dor.
Quem não tem vontade própria fica à mercê do ferrão dos outros…
Mas o orgulho do carreiro está na música que o carro faz. Carro de boi é instrumento musical. A madeira do eixo, girando apertada na madeira do encaixe, produz um som contínuo, lamentoso, uivo de carpideira, um gemido sem fim.
Quando o carro canta o carreiro sobe em cima, segura o ferrão na vertical como se fosse uma lança, e sorri, orgulhoso, como se fosse um músico dando um concerto.
Tenho saudade dessas músicas, a música do monjolo, a música do carro de boi. Dentro de mim elas continuam. E eu gostaria que ainda houvesse monjolos e carros de boi para que vocês, minhas netas, pudessem sentir o que eu sinto…
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