Não há nada mais horripilante do que acordar de manhã e se deparar com a pia convulsionando louça suja. O caminho até o filtro vira um congestionamento de copos bêbados e insatisfeitos. As vasilhas acotovelam-se no canto da pia. Os pratos treinam o equilíbrio numa gangorra perigosa.
A louça da noite anterior é uma vingança que te dá “bom dia”.
Uma gargalhada estridente que reverbera enquanto você come Sucrilhos.
De dentro do pijama azul-celeste você ensaia uma reclamação. Quer apontar um culpado, mas não adianta. Você mora sozinho.
Louça suja não faz pacto com a meteorologia. Não faz amizade com tempestades ou vulcões. Louça suja esbanja paciência. O arrependimento não tem poderes autolimpantes e o seu erro só será perdoado com água e sabão. A alegação é sempre a mesma, “não tinha tudo isso”. Você exclama dentro de um silêncio sofrido, como se a mágoa fosse capaz de lavar os copos. Uma lágrima quase cai. A sua fisionomia é de quem cometeu um crime, deturpou um mandamento doméstico. “NÃO DEIXARÁS LOUÇA SUJA NA PIA”, você deixou.
Ela se multiplica para rir do seu espanto. Nessas horas, até a panela de pressão comparece ao “Baile dos Pratos Sujos”. Você caminha pensativo, anda de um lado para outro na cozinha, quer decompor a noite anterior. Refaz os passos, ordena a memória em arquivos e nada. Você não deu festa. Não recebeu convidados para o jantar. Não fez estrogonofe. Não fritou ovo. Você só esqueceu que é reincidente nesse crime, e sujeira tem memória visual. As noites anteriores acumularam as infrações e a pia apenas fez o seu papel de caixa registradora. Agora, você está acuado, nem pode dizer “lavo as minhas mãos”.