Isaias Costa

Ri-se da cicatriz quem nunca foi ferido

Como diz um recente artigo do jornal El País, os EUA vivem a maior crise racial desde a morte de Martin Luther King. O que vemos pelos telejornais é apenas um recorte bem pequeno da efervescência das manifestações contra o racismo que vem acontecendo nos últimos dias.

Falar sobre essa temática é delicadíssimo e considero super necessário. As palavras lúcidas do filósofo Mario Sergio Cortella me inspiraram a pensar melhor sobre o que vêm acontecendo. Confira…

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Ter a capacidade de se afetar pelo sofrimento à nossa volta e ter a sensibilidade de não menosprezar aquela condição. Cada indivíduo, em tempos difíceis, tem os seus sofrimentos, os seus transtornos. Há, no entanto, pessoas que são vitimadas pelas situações de modo mais perene e com dores mais profundas.

Isso significa que há uma honradez na compaixão, que não é ter pena de alguém, mas a possibilidade de uma sintonia, de uma empatia com aquela forma de desconforto, de dificuldade. E também pela iniciativa de dar o passo seguinte, que é procurar ajudar as pessoas nessa condição.

É preciso muita cautela com o desprezo pela dor alheia, que algumas pessoas manifestam com brincadeiras tolas, com falas que diminuem o sofrimento alheio.

O dramaturgo britânico William Shakespeare (1564-1616), na tragédia “Romeu e Julieta”, publicada em 1597, faz Romeu dizer no ato II: “Ri-se da cicatriz quem nunca foi ferido”. Essa é uma ausência de compaixão desonrosa.

Mario Sergio Cortella

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O mundo inteiro está carente de compaixão, que significa “sofrer junto”. Ou seja, compreender a dor do outro e fazer o que estiver à disposição para tentar ajudar. A morte terrível do George Floyd nos EUA foi a gota d’água para iniciar um movimento do desmonte de um sistema que vêm massacrando os negros há séculos.

A revolta gerada pela sua morte por sufocamento despertou no mundo inteiro esse grito por mudança, tanto que no dia 02/06/20 houve um movimento mundial nas redes sociais chamado #blackout tuesday, que em tradução livre significa “terça-feira do apagão”, no qual as pessoas compartilharam uma foto totalmente preta em sinal de protesto pelo assassinato do George.

Mesmo sendo um movimento de um dia, podemos perceber o poder que a união representa. Se o mundo inteiro se unir diante dessa causa, o poder do racismo pode e vai diminuir, mesmo sabendo que ainda haverá, infelizmente, muitas mortes…

Sempre digo nos meus textos que o poder da intenção é multiplicado “n” vezes quando se junta com a mesma intenção de muitas pessoas.

A fala do Cortella é muito precisa. Os negros são vitimados de forma perene e com dores mais profundas. Esse incidente nos EUA é uma prova escancarada disso. Se o George Floyd fosse branco, eu não tenho a menor dúvida de que sua vida seria poupada e aquela cena pavorosa não teria acontecido.

O Cortella também fala sobre poder ajudar as pessoas que estão nessa situação de sofrimento agudizado. A empatia, o respeito, a cumplicidade… Esses são os primeiros passos. Além disso, é preciso haver uma mudança na formação humana, na educação escolar, nas leis que regem os países, de modo que se ensine, desde o berço, que somos parte de uma mesma humanidade, todos, todos nós!

Parece um absurdo, mas existe sim muita gente que se sente superior. E uma das formas, a meu ver, mais nojentas de se pensar isso, é a respeito da cor da pele. Isso é absolutamente inadmissível! Repito nesse texto o sonho do Luther King, que gostaria de ver o mundo julgar os seus filhos pelo caráter deles e não pela cor da pele. Esse mundo pode existir, e quero, dentro das minhas possibilidades, contribuir para a sua construção…

Por fim, vem a reflexão mais profunda. A desigualdade social. As pessoas que zombam, que fazem piada e pouco caso não só do assassinato do George Floyd, mas de tudo que envolve os negros, é porque jamais se colocaram no lugar desses nossos irmãos.

“Ri-se da cicatriz quem nunca foi ferido”. É triste dizer isso e me dói o coração ao escrever, mas nossos irmãos negros já vêm ao mundo com uma espécie de ferida causada pela sociedade injusta e desigual e eles passam a vida inteira acumulando cicatrizes às vezes invisíveis, por outras, mais do que visíveis, devido à violência física sofrida desde os anos escolares… E nessa hora vêm brancos tolos rindo dessa realidade? Essa é a total falta de conexão, de empatia e de compaixão.

O mundo no qual eu almejo viver vai fazer cair por terra esse disparate que foi politicamente institucionalizado no qual privilegia os brancos em detrimento dos negros.

Talvez essas manifestações nos EUA estarem ocorrendo no meio da maior crise desde a 2ª Guerra Mundial sirva como um impulsionador para que as mudanças estruturais na sociedade possam acontecer de forma mais rápida e efetiva. Essa é a minha esperança! E sonho que seja uma esperança do verbo “esperançar” e não do verbo “esperar”, como diria o mestre Paulo Freire…

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Photo by jurien huggins on Unsplash

Isaias Costa

Bacharel em Física. Mestre em Engenharia Mecânica e Psicanalista clínico. Trabalha como professor de Física e Matemática, mas não deixa de alimentar o seu lado das Humanas estudando a mente humana e seus mistérios, ouvindo seus pacientes e compartilhando conhecimentos em seu blog "Para além do agora", no qual escreve desde 2012.

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