Um dos meus filmes preferidos é o premiado “O Segredo dos seus Olhos”, do diretor Juan José Campanella. O longa argentino de 2009 aborda de forma sensível e profunda a complexidade da alma humana, conseguindo retratar belissimamente o mundo invisível que cerca a troca de olhares entre duas pessoas.
Na trama, Benjamin Espósito, vivido por Ricardo Darin – dono de um dos olhares mais expressivos da história do cinema- é um oficial de justiça aposentado que decide ocupar seu tempo livre escrevendo um livro de ficção. Para isso, usa como ponto de partida um crime ocorrido há 25 anos que o impactou profundamente na época. Sendo assim, ele retorna ao tribunal, onde trabalhou em 1974, e se depara com uma antiga funcionária que permanece empregada lá.
Nesse momento, nos deparamos com Benjamin Espósito na meia idade, revelando seus segredos e sua alma no olhar que dirige à antiga colega, Irene Hastings. A partir daí, o filme inteiro transita entre 1999 e 1974, trazendo diversos flashbacks, levando-nos a compreender as renúncias, privações, temores e paixões contidas nessa intensa e profunda troca de olhares.
Somos seres complexos. Nem tudo tem explicação, nem tudo pode ser compreendido ou decifrado. Algumas emoções surgem sem pedir licença e alguns olhares nos traem mesmo quando tentamos ocultar uma tristeza, uma mágoa ou uma paixão.
Acredito que a beleza de “O Segredo de seus olhos” resida na não concretização do desejo. Essa dor, essa impossibilidade e tristeza permeiam todo o filme e, ao mesmo tempo que não entendemos o temor, somos arrebatados pela paixão platônica entre os dois e nos apaixonamos junto com Benjamin e Irene, experimentando toda vida não concretizada que reside naqueles olhares.
Acredito que algumas histórias se mantêm mais bonitas quando são não vividas. Quando permanecem no campo do sonho, da imaginação, da fantasia. Quando habitam aquele mundo secreto dos olhares e pensamentos, como se houvesse uma outra dimensão, fora dessa que podemos tocar.
Essas histórias, caso rompam a barreira do sonho e se concretizem, podem causar frustração, desapontamento, rompimento com a beleza. Porque foram feitas para existir somente naquele mundo invisível do encantamento. E esse é um mundo rico também. Uma experiência que nos mostra que a complexidade da nossa alma é muito maior do que podemos supor.
A história de uma pessoa não é meramente o que aconteceu, o que se concretizou. Abrigamos palavras não ditas, caminhos não escolhidos, sonhos não realizados. Nem tudo cabe em nossa vida, nem tudo pode ser dito ou expresso, mas essa outra vida caminha conosco, vai dentro da gente. Nossas vidas não vividas nos acompanham, quer tenhamos consciência ou não.
Adoro o livro “O que você é e o que você quer ser”, de Adam Phillips. Nele, o psicanalista aborda nossas vidas não vividas, aquelas que compreendem os amores não correspondidos, o sucesso não alcançado, o desejo não satisfeito. E ele diz que “nossas vidas não vividas – aquelas que vivemos na fantasia- são com frequência mais importantes para nós do que aquelas que chamamos de “vidas vividas”.
Igualmente, o escritor escocês John Burnside, diz: “Penso que nada seja tão importante quanto aquilo que jamais aconteceu”.
Não sei se concordo com essas afirmações, mas acredito que faz parte da condição humana essa tendência de se fixar naquilo que não se tem, na ilusão, na impossibilidade.
E talvez tenha sido esse o motivo que conduziu Benjamin Espósito a agir como agiu em relação a Irene. Talvez ele tivesse medo de que a realidade pudesse estragar tudo. Talvez ele temesse o fim do encantamento ao tornar as coisas possíveis. Talvez ele fugisse do amor por querer prolongar a paixão. E ele conseguiu. Ao evitar o amor, se manteve apaixonado por Irene, e ela por ele.
Benjamin amava e tinha medo de amar. E esse amor/temor é revelado tanto através dos olhares quanto na escrita. Ele tinha um bloqueio criativo, e esse bloqueio foi lindamente retratado no jogo entre as palavras “Eu te amo” e “Eu temo”. Explicando: a tecla “A” da máquina de escrever não funcionava para Espósito, e por isso ele nunca conseguia escrever “Eu te Amo”. No lugar disso, escrevia “Eu temo”, transparecendo o medo que ele tinha de viver esse amor.
Finalmente, uma palavra que li certa vez num livro. A palavra Mamihlapinatapai, da língua Yagan da Terra do Fogo, foi listada no Guiness Book como a palavra mais sucinta que existe. Ela descreve “um olhar trocado entre duas pessoas no qual cada uma espera que a outra tome a iniciativa de algo que os dois desejam, mas nenhuma quer começar ou sugerir”. Sendo assim, só posso acreditar que, por mais que a gente tente esconder, o nosso olhar é mesmo um espelho de prata de nossa alma.
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Interessante!
Muito bom o texto, nos leva a fazer uma análise de nossos sentimentos não vividos que tanto nos maltrata. Nos faz pensar de uma outra maneira do porque não ter podido viver algum amor ou paixão que parecia ser tão lindo, mas que por algum motivo não tivemos a sorte de viver.
Obrigada, eu amo seus textos.
Que belíssimo texto, minha querida Fabíola Simões. Permita-me tratá-la assim pois gosto imenso de tudo que escreve e vejo muitas afinidades entre nós. Sempre publico seus textos no meu face e fazem muito sucesso.
Continue escrevendo para alegria daqueles que têm o privilégio de lê-la.
Obrigada de coração.