Tenho na memória a viva lembrança da primeira vez em que fui chamada de “Senhora”. Comecei a dar aulas num colégio alemão, onde uma das inúmeras regras era que tanto os alunos quanto seus pais e mães tinham de chamar a professora de “Dona Fulana de Tal” e de “Senhora”. Eu tinha à época apenas 37 anos! Uma garota, certo?
Confesso que levei muito tempo para me conformar com essa regra, e confesso, ainda, que nunca cheguei a me acostumar com ela. O curioso é que mesmo hoje, muitos anos depois de ter saído dessa escola, os incontáveis amigos que fiz lá – alunos, pais e mães de alunos -, todos eles ainda me chamam de Dona Ana. Não adianta! O costume instalou-se e grudou em mim feito um chiclete.
A justificativa da escola para tanta formalidade passava por uma questão cultural e outra de cunho ideológico; a primeira é que na Alemanha, toda mulher depois de completar dezoito anos deixa de ser Fräulein e vira Frau; a segunda é que ser chamada de Senhora é um hábito que impõe respeito.
Bem, quanta à questão cultural, eu costumava rebeldemente contestar que não estávamos na Alemanha e que, portanto, não fazia o menor sentido adotar essa prática. E quanto à questão, ideológica a minha alma de verdade se rebelava, posto que não creio que o respeito seja instalado ou garantido por meio desse ou daquele pronome de tratamento.
Respeito é algo muito mais profundo do que isso. Respeito passa por uma construção de muitos tijolinhos de convivência, pautado na premissa da escuta, da admiração e da formação de vínculos afetivos. Você pode ser obrigado a chamar o chefe de uma nação de Vossa Excelência, sem ter um único motivo para respeitá-lo.
Acontece que, concordando ou não, eu tinha que me submeter, uma vez que gostava bastante de exercer a minha profissão naquela instituição, até o dia em que senti que minha missão ali estava concluída. E como dizia minha vovó Nenê: “Já que está no inferno, abraça o capeta”! E foi o que fiz… virei “Senhora”, virei “Dona Ana” porque a motivação falou mais alto do que a rebeldia.
Entretanto, devo fazer aqui uma última confissão… Além das questões culturais e ideológicas, eu fui acometida naquela ocasião por uma incontestável crise de vaidade. Aquele tratamento formal acrescentava aos meus ombros muitos anos, além dos que eu já havia vivido. Sentia-me uma verdadeira anciã. E isso mexeu com alguma coisa dentro de mim que nunca havia sido perturbada antes.
Nós, as mulheres, não costumamos lidar com tanta tranquilidade com esse lance da idade. Quando somos meninas, queremos ser moças, acreditando que basta ter uns aninhos a mais para conquistar alguma coisa parecida com a liberdade. Quando somos moças, alimentamos a ilusão de perpetuar essa fase, tão cheia de descobertas, para toda a eternidade.
O fato, é que começamos a envelhecer assim que nascemos. As mudanças físicas e as transformações comportamentais e até neurológicas são inevitáveis. O tempo passa inexoravelmente. E, se não tivermos um tantinho que seja de sabedoria para entender que isso também tem a sua beleza, que tudo bem nos cansarmos com mais facilidade, que não há problema em preferir a quietude de uma reunião entre amigos a baladas que varam a noite, que não devemos nos importar tanto por nos tornarmos invisíveis aos olhos tão obstinadamente apegados à beleza jovem que os homens aprenderam a ter, passar a ser “Senhora” pode se tornar um fardo muito difícil de suportar.
Nenhuma mulher gosta de ser chamada de “Senhora”, porque nos acostumamos com o julgamento social, com o medo da perda da juventude, com a nossa forma torta de olhar para nós mesmas a partir de uma lente que valoriza demais as aparências.
Hoje, passados dezenove anos da primeira vez em que fui chamada de “Senhora”, preciso dizer que isso perdeu completamente a importância para mim. Preciso dizer que tenho enorme orgulho das marquinhas que o tempo deixou no meu corpo e no meu rosto. Preciso dizer que estou aprendendo a me amar do jeitinho que eu sou. E isso é simplesmente maravilhoso!
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Imagem de capa: Fotolia
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