Antes a gente tinha tantas limitações! Ter LP era ostentação. Conseguir uma versão acústica da banda preferida era um sacrifício, troféu digno para os Sherlock Holmes de plantão.

A gente ia à biblioteca e gastava horas selecionando livros para pesquisar um determinado assunto para o trabalho de Biologia ou de História.

A gente comia mais à vontade e era chique demais quem “fazia academia”.

No futebol, se a câmera não pegasse o lance em cima, a gente morria na dúvida se foi impedimento ou não. A gente morria sem saber se foi, se não foi, mas nunca admitia a dúvida.

A pessoa ia passar uma temporada no exterior e a gente ficava daqui seco, esperando por um cartão-postal.

E antes dessa geração, que tinha tantas limitações, tiveram outras com mais limitações ainda, geração de gente mais simples e tão mais feliz, quem sabe.

Os dias eram mais compridos, brincar na rua só depois de fazer os deveres de casa. Quando tinha pesquisa, nem pensar: era a tarde inteira procurando palavras ou figuras nas revistas mais antigas.

Quando a cigarra cantava, uma melancolia silenciosa inundava nosso coração: mais um dia estava se encerrando, hora de banho, janta e cama.

A gente escrevia cartinhas para as melhores amigas e respondia o caderno de perguntas com respostas confidenciais. A gente machucava o joelho de vez em quando e chorava mais pelo merthiolate que pelo ralado em si.

A gente ansiava por dezembro, pelas férias da escola, pelo verão na praia e pelo reencontro com os amigos na próxima série, com o material novo e às vezes, a mochila também.

Perder uma ligação era uma possibilidade de nunca saber quem ligou, deixar de atender uma ligação era uma maneira infalível de não ser incomodado, não havia plano B.

Não havia forma de saber muito da vida do outro. Não haviam muitos jeitos de ofender pessoas que pensavam diferente, isso era bem limitado, as opiniões eram expressadas nas rodinhas de amigos fosse na calçada de casa, fosse num boteco.

Eu sinto tanta saudade desses pequenos mistérios que existiam acerca do outro, eu sinto saudade dessa privacidade velada sob essas limitações cotidianas. Eu sinto saudade até do lamento da cigarra no final da tarde, que as crianças de hoje nem sabem como é, e eu não entendo como podem ser tão ilhadas, com seu tablets na mão.

Ludmila Clio

Ludmila Clio nasceu em Cachoeiro de Itapemirim/ES, em 22 de Março de 1981. Começou a escrever para sua gaveta, como a maioria dos escritores, mas furtivamente, mostrando seus escritos para amigos e professores, foi encorajada a romper com a gaveta e publicar-se. O estopim se deu em 2004, quando venceu pela primeira vez um concurso nacional de poesias, realizado no Paraná. Graduada em História e autora de 02 livros de poesia, está prestes a lançar seu primeiro livro em prosa. Mora atualmente em Campinas/SP com sua filha adolescente.

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