Era uma tarde fria típica do inverno curitibano. Sonhando com um café, eu olhava as gotas de chuva dançando na janela quando o toque do celular interrompe meus devaneios. O funcionário do banco gostaria de confirmar um depósito feito no caixa automático, na minha conta, no dia anterior. Intrigada, afirmo que eu mesma depositei. Em seguida ele cita o valor e aguarda nova confirmação. Começo a ficar desconfiada, decido não fornecer nenhuma informação adicional. Diante da minha mudança de tom, o rapaz declara que não pode aceitar o meu depósito, pelo menos não por completo. Como assim, não pode aceitar?

− Esta nota de 100 CRUZADOS não tem validade, senhora!

Senhora? Procuro disfarçar meu desagrado. Não gosto de ser chamada assim; pelo menos por enquanto. 100 cruzados? Ele deve estar brincando comigo. Neste momento um lampejo de memória exclui a possibilidade de trote, fraude ou algo parecido – e aceito que eu mesma fiz isso.

Volto o pensamento para a sala de jantar da mãe da minha amiga, que chamo carinhosamente de “tia” desde a infância. Era dia do esperado almoço mensal que nos permite uma brecha no tempo para colocar a conversa em dia. Entre comida caseira da melhor qualidade e risada de criança me deparo com uma velha caixa de sapatos num canto da mesa. Espio o conteúdo e não consigo disfarçar o espanto. Quando me dou conta, a “brecha no tempo” se abre por completo: a tia exibe um leque de notas antigas nas mãos e um sorriso no rosto. É bastante dinheiro, ou melhor, era. Dinheiro de vários nomes, de diferentes tempos. Notas novas, lisinhas, quase cheirosas – que já não valem nada. Pra ela, valem muito.

Olho para minha amiga e acho graça em suas sobrancelhas arqueadas, o olhar complacente, os lábios permitindo um leve sorriso. Ela cresceu vendo a mãe economizar em tudo – e guardar dinheiro novo até virar dinheiro velho. “Existem coisas que são como são, não têm remédio, não têm razão” – nossa longa amizade me permite ler seus pensamentos. A razão está na escolha de cada um. Da mesma forma que escolheu guardar aquelas notas por toda a vida, naquele momento minha tia escolheu dividir comigo o seu tesouro.

− Fique com esta nota para você. Ela estampa Juscelino e a cidade onde você nasceu. Será teu amuleto, vai te trazer sorte – e dinheiro também.

Escolhi uma divisória isolada da carteira para acomodar JK em forma de bom presságio. Tive certeza que a sorte viria – já o dinheiro, permanece na esperança. Face a face com aquela nota, porém, guardei o mais importante: o amor daquela senhora que me viu crescer.

Muito tempo depois o rapaz atribulado ao telefone quer saber se pode descartar a tal nota de 100. Olhei pela janela, a chuva se intensificava. Ponderei a necessidade de enfrentar o trânsito, o estacionamento e a fila do banco. “Descartar? De jeito nenhum!” Quando o encontrei no primeiro caixa à esquerda, ele sorria incrédulo. Entregou-me a “nota sem valor” e refez meu depósito, eliminando os 100 “reais” que eu havia contabilizado. Tenho certeza que não compreendeu meu apego com a nota antiga. Não insisti na explicação. Existem coisas que são como são, não têm remédio, não têm razão. São as coisas do coração.

Mônica Moro Harger

Arquiteta, tia, madrinha de sete. Apaixonada por gente e palavras, desde cedo fez dos “escritos” uma forma de homenagem: à vida, à família, aos amigos. No início de 2018 reuniu alguns textos no facebook e ganhou leitores assíduos, mais amigos e novos sonhos. Desde então, divide os projetos com as palavras - além do cinema com os afilhados (um ou dois de cada vez) e do café com a “menina da sala ao lado”. Vive em Curitiba, onde coleciona memórias, ímãs de viagem e recados na geladeira.

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Tags: nota de 100

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