Tudo começa como uma atividade prazerosa, muitas vezes à qual se recorre para relaxar da rotina, ou escapar de situações da vida real com a qual não se consegue lidar. Cria-se uma vida em paralelo. O jogo é um desafio que se pode enfrentar sem testemunhas para presenciar o erro ou a derrota. Vencer uma etapa, “passar de fase”, passa a ser um objetivo de metas claras. O segredo do sucesso? A experiência. E a experiência pode requerer do indivíduo a sua exclusão das outras atividades da vida. Assim, o que era apenas um passatempo, sobe à categoria de estressor; e no lugar do inicial desejo de fugir da tensão, instala-se o vício; em casos mais graves, a dependência.
Os games on-line ou off-line constituem parte significativa dos dias e noites de nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos. É muito comum observar pais de crianças muito pequenas, oferecerem a estas – a título de entretenimento – sua primeira experiência com as telas. Claro que nenhum pai ou mãe, em sã consciência ou de caso pensado, planeja alienar seu filho do convívio social, ou subtrair-lhe o direito a vivências ricas do mundo real. No entanto, por estarem sobrecarregados ou ocupados demais em dar conta das inúmeras demandas da vida, acabam por recorrer a vídeos e jogos infantis, como recurso para distraí-los, acalmá-los ou estimulá-los. Tornou-se uma cena comum ver adultos encantados com o poder de determinados programas sobre o comportamento de bebês; a criança pode estar no meio de um choro convulsivo, basta ouvir uns acordes daquele “inocente programinha” para cessar o choro e voltar os olhinhos atentos para a tela. Tirando a curiosidade que a cena envolve, basta parar por um segundo e refletir brevemente, para concluir que isso não pode ser normal.
Essa semana, a OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou que o vício em games deverá ser incluído como distúrbio mental na próxima edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com Saúde (CID). Neste documento, a condição dos viciados em games entrará como “desordem relacionada a comportamentos viciantes”, cujo diagnóstico segue protocolos muito parecidos com aqueles utilizados para determinar a “dependência por jogos de azar”. Ter o distúrbio incluído na CID é um reconhecimento dos estudos realizados na busca por sintomas para a determinação dos critérios de diagnóstico e, o mais importante, propostas de tratamento — opina a psicóloga Luciana Nunes, fundadora do Instituto Psicoinfo. — E a inclusão no CID é pré-requisito para o atendimento em hospitais públicos e para a cobertura dos planos de saúde.
Não se trata de demonizar o uso de tecnologias. Até mesmo porque esta seria uma postura no mínimo ingênua. Os recursos tecnológicos são uma conquista da humanidade para democratizar o acesso a informação, facilitar pequenas tarefas do dia-a-dia como usar um transporte ou pedir uma refeição. É inegável a contribuição dos computadores, tablets e smartphones na comunicação com qualquer parte do mundo, em qualquer tempo ou lugar. Muitas escolas têm feito dos recursos digitais, aliados dos professores na tarefa de ensinar; há inúmeras plataformas e aplicativos que agregam valor à busca do conhecimento, partilha de informação e resolução de problemas.
Entretanto, não podemos perder de vista que as ferramentas digitais são exatamente o que são: ferramentas. Não podem substituir a interação e conexão sociais necessárias ao desenvolvimento de habilidades humanas; não excluem o papel fundamental dos educadores de promover vínculos com a aprendizagem; não eximem escolas e universidades de sua missão de desafiar, promover debates, construir pensamentos investigativos e reflexivos, e formar indivíduos conscientes de seu papel no mundo.
Máquinas são apenas máquinas. Assim como a lousa não se escreve sozinha, não há plataforma digital, por mais completa que seja, que possa substituir um mestre cônscio de sua intransferível missão. Da mesma forma, não há game, youtuber ou maratona de séries que possam tomar o lugar das experiências do mundo real.
O perigo mora no exagero, na falta de capacidade de traçar limites, na inexperiência diante do risco de ser tragado para um universo virtual e abdicar das vivências necessárias à inserção no mundo de verdade.
Há jovens e crianças que têm mais dificuldade para lidar com os desafios de uma vida em grupos, sejam eles a família ou os amigos. Esses indivíduos são aqueles mais suscetíveis a cair nas armadilhas de sentir-se poderoso e reconhecido por meio de suas habilidades nos jogos. Quando se joga online, por exemplo, cria-se uma falsa impressão de ter amigos, muitos amigos. No entanto, não há relação estabelecida por meio desse contato; há apenas um lugar de adversário momentâneo e parceiro virtual. O jovem pode sentir-se menos solitário num “relacionamento” estabelecido nessas bases: não há conflito, não há julgamento à aparência física, não há necessidade de sair da casca.
A longo prazo, pode-se perder completamente o interesse pelas tão intrincadas relações com o outro, que exigem movimentos emocionais, adaptações, aprender a lidar com o diferente, com o que desafia e com a frustração. Perde-se o desejo de interagir. Cria-se o desejo de se isolar.
Alguns sinais de que o uso dos games pode ser considerado um problema:
• não ter controle de frequência, intensidade e duração com que joga videogame;
• priorizar jogar videogame a outras atividades;
• continuar ou aumentar ainda mais a frequência com que joga videogame, mesmo após ter tido consequências negativas desse hábito;
É claro que não se trata de proibir, erradicar, jogar fora ou nunca permitir a aproximação com o videogame. Trata-se de assumir que esta é mais uma faceta da educação dos pequenos e médios que são da responsabilidade dos pais. Há que se acompanhar, observar e ajudar a encontrar o equilíbrio. E, em caso de se perceber que há prejuízos, tomar atitudes imediatas. É no acompanhamento de cada situação de vida que se educa uma criança, ou um jovem. É por meio do diálogo e da autoridade amorosa que se garante uma relação de afeto e um ambiente seguro para os filhos. Dá trabalho? Lógico que dá! Mas é um trabalho absolutamente digno e intransferível, cuja recompensa é não sofrer dores irreparáveis mais tarde.
Imagem de capa: Peter Bernik, Shutterstock
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