Ana Macarini

Adultização: a infância descartada

Os olhos, a boca e a cabeça são de menina; olhos enormes em tamanho, mas miúdos em experiências; boca de riso fácil e paladar infantil, apaixona-se pelos sabores doces da vida, mas não é capaz de articular palavras em defesa de sua infância; cabeça cheia de ideias e fantasias que não dão conta de se proteger das armadilhas dos apelos publicitários.

Meninas transformadas precocemente em mulheres. Meninas expostas a uma mídia cada vez mais agressiva que tira das pequenas o gosto pelas coisas tão simples da infância. Meninas cujos responsáveis abrem mão do direito e dever de protegê-las e garantir a elas que as etapas da vida sigam o processo natural da maturação.

Os olhos, boca e cabeça dos nossos meninos, tampouco escapam da aceleração do ingresso no mundo adulto. Garotos ainda bem pequenos são estimulados a interessar-se pela beleza física e explícita feminina, emitindo opiniões “masculinas” acerca de sua aparência. Garotos que deveriam andar com o rosto sujo e o corpo suado de brincadeiras, vivem numa rotina atrofiada e cheia de compromissos; passam horas em estado quase vegetativo tragados pelas telas do computador, do celular ou do videogame. Meninos que carregam nas costas a expectativa de pais ansiosos em vê-los transformados em adultos de sucesso.

Meninos e meninas sofrem o impacto de agendas superlotadas; enfrentam currículos apertadíssimos em escolas “puxadas”; correm de um lado para o outro envolvidos em atividades que variam de aulas de inglês a treinos de esgrima. Padecem da falta de tempo para estar na própria casa, inventar brincadeiras, descansar ou simplesmente passar algum tempo fazendo absolutamente nada, gastar algum tempo do dia perdidos na maravilhosa e única experiência da infância.

A sociedade contemporânea olha para o ócio como se fosse uma droga perniciosa, levando ao extremo a premissa de que precisamos permanecer produtivos as 24 horas do dia. Os adultos, enterrados em rotinas desumanas de trabalho, aprimoramento profissional e consumismo desenfreado, incluem suas crianças nessa cultura cega de acúmulo de coisas, necessidades e funções. O que se vê, lamentavelmente, é o encurtamento da infância, essa fase da vida que dura no máximo até os 12 anos de idade vem sofrendo golpes eficazes em sua durabilidade.

É excessivamente comum observarmos pais exibindo orgulhosamente a postura precoce de seus filhos; alardeando o quanto são maduros, espertos para a idade, extremamente inteligentes e capazes de dar conta da rotina da escola que é tão exigente e ainda, serem dignos de admiração em atividades esportivas que envolvem horas de treino semanal. É preciso cautela para não deixarmos passar desapercebido que essas expectativas além da conta podem colocar em perigo o desenvolvimento emocional dos pequenos.

Estimular os meninos e meninas a ter responsabilidade com suas atribuições escolares, oferecer-lhes a oportunidade de aprender uma outra língua e proporcionar-lhes a chance de praticar um esporte que favoreça a socialização e contribua para a saúde física, são comportamentos esperados de pais cujo intuito genuíno é garantir condições plenas de desenvolvimento para seus filhos. O perigo se esconde nos excessos. É muito fácil errar a mão na quantidade de atribuições sob o pretexto de preparar seus filhos para a vida.

É preciso refletir sobre o descompasso que existe entre o desenvolvimento cognitivo e o emocional. Muitas vezes, embora a criança apresente de fato um excelente desempenho intelectual e pareça assimilar com facilidade novos desafios, ocorre que ela não tem condições emocionais para suportar uma sobrecarga de compromissos e o enfrentamento de preocupações advindas da expectativa que se projeta sobre elas; é muita pressão.

O resultado é a ocorrência cada vez mais frequente de crianças sofrendo de “males de gente grande”. Crianças estressadas, ansiosas e até deprimidas. Por estarem sempre às voltas com situações que envolvem a conquista de resultados, podem ocorrer dificuldades de relacionamento com outras crianças. Essas dificuldades acontecem em função da formação de uma postura competitiva e desprovida da capacidade de respeitar o diferente ou o menos apto. Outra questão muito importante é a falta de habilidade para lidar com frustrações e situações não planejadas que podem levar, inclusive, a bloqueios no processo de aprendizagem.

Além das questões relativas ao comportamento, a saúde física da criança adultizada também sofre um grande impacto. Incentivados a reproduzir o comportamento dos mais velhos, a criança acaba aderindo a uma dieta pobre em nutrientes e rica em calorias. O resultado é o número alarmante de meninos e meninas às voltas com problemas de saúde tipicamente adultos como pressão alta e alteração nas taxas de colesterol.

Uma boa oportunidade para comprovar a indiscutível ocorrência da adultização infantil em nossa sociedade pode ser a observação de uma inocente festa de aniversário de criança. Detalhes que aparecem inofensivos, mas não são: letras de música cujo conteúdo é de arrepiar os pelos da nuca; coreografias sensuais reproduzidas por crianças que mal aprenderam a andar; meninas calçando sapatos de salto e usando maquiagem; meninos vestidos como pequenos adultos e exibindo cortes de cabelo no melhor estilo “estrela do futebol”.

O fato é que nada disso é normal; e, pior, parece nos proporcionar um retrocesso a tempos em que não se sabia que há diferenças cruciais e orgânicas entre as necessidades físicas, psíquicas e sociais de adultos e crianças. A boa notícia é que ainda dá tempo. Dá tempo para parar, observar e refletir sobre as consequências dessa adultização precoce. Dá tempo para assumir a responsabilidade adulta que precisamos ter em relação à proteção, manutenção e respeito à infância de nossas crianças.

Imagem de capa: HTeam, Shutterstock

Ana Macarini

"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"

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