Antônia no Divã

Viajar é um estado constante de encardimento

Em primeiro lugar, que fique claro que minha mãe me educou com plenas orientações sobre higiene, ok? “Se você não pode estar bem arrumada, esteja pelo menos bem limpinha” – ela costumava dizer. Eu não desenvolvi grandes vaidades, mas sempre mantive as unhas bem limpas, o cabelo cuidado e as partes importantes lavadas todos os dias (com exceção ao fatídico episódio da calcinha suja, mas isso é outra história). O desodorante está sempre na validade e eu passo fio dental vez que outra. Ou seja, numa escala normal, dá pra dizer que eu sou limpa e cheiro bem.

Isso até começar uma viagem, é claro.

Tenho comigo que viajar é um estado de constante encardimento. Não importa o quanto você lute contra. E não estou tomando apenas o meu caso como fonte de estudo, mas sim todo fedorentinho encardidinho que encontrei pelo caminho. Calma! Isso não quer dizer que todo viajante abre mão de água e sabão quando bota a mochila nas costas. A gente tenta manter as coisas em ordem. Mas há de se considerar que algumas situações são impossíveis de contornar.

Como por exemplo, pé é um troço que nunca mais fica limpo. Talvez porque quando viajamos largamos um pouco dos calçados fechados, e a poeira do caminho adore pegar uma carona. Adotamos a marca de sujeira que forma abaixo da alça das havaianas como a tatuagem oficial dos pés inquietos. O fato é que não tem como manter impecável a base da nossa caminhada. Desista de fazer as unhas do pé, porque a estrada não tem paciência com esmalte nenhum, e ninguém aqui carrega líquidos inflamáveis entre aeroportos. E se você acha que pode evitar estes percalços usando tênis, evite cheira-los após horas de caminhada por trechos desconhecidos. Eu vivo numa constante guerra para desgrudar os vestígios da praia antes de ir dormir, e percebo que falho majestosamente toda vez que encontro a cama cheia de areia. Até que desisti. Depois de alguns dias viajando, permiti meus pés desfilarem descalços, desfrutando de um encardume que combina lindamente com os meus joelhos pretos (que sempre bronzeiam mais que o resto do corpo).

Por falar em joelho, as canelas mandam lembranças para aquela gilete que passou a ser usada em intervalos mais longos. Eu não perdi o meu completo desespero em remover os muitos pelos do meu corpo, mas confesso, os banheiros que tenho usado não tem nem água quente, que dirá iluminação para que eu faça um bom trabalho com a lâmina. O mesmo vale para as axilas. A virilha está sempre depiladinha, “como toda mulher deve ser”. Mentira! Não vê cera há meses, e minha mais nova invenção foi atenuar sua incidência com a maquinha de raspar o cabelo do boy. Julgue-me se for capaz.

Tudo que é meu tem algum odor e alguma mancha. Como não tenho tido o acesso continuo a lavadoras de roupa, e qualquer decisão de lavar roupas deve ultrapassar a preguiça de lavá-las na mão, a tolerância- ficou mais flexível. A mochila vive cheia de pó. E a maior parte das minhas roupas têm um resquício de amaciante misturado com suor, água do mar e mais suor. Se eu estou de férias, as minhas glândulas sudoríparas fazem hora extra. Meu vestuário tem manchas de protetor solar, de vinho que dividi com bêbados desconhecidos, respingos de molhos de pratos que experimentei e tempero de miojo no seu amarelo mais pulsante. Nada seca direito, então assumi a humildade como minha nova amiga, e a essência de cachorro molhado que vem junto dela.

Em Roma meu perfume já foi pizza e espresso, na Grécia cultivava uma essência de gyros e bomba de gás lacrimogênio (tempos difíceis!), em Amsterdã desfilava com um bálsamo de graxa de bicicleta, sexo e maconha, e aqui na Indonésia eu emano coco queimado, plumeria, gudang garam e oferenda. Cada parada é uma essência (ou ranço) diferente e único.

Meus cabelos seguem sendo bem tratados, mas agora por algas marinhas, areia (muita areia), shampoos de marca duvidosa e um eventual caranguejo. Aliás, viagem é a teoria do desapego em movimento, então até o cabelo pedi a alguém que o cortasse pela metade. O comprimento até a cintura me fazia perder muito tempo desfazendo os dread locks que passei a cultivar. Penteado que virou uma obra elaborada dos ventos que me lambiam a cabeça sempre que eu subia numa moto, num trem, num barco.

Eventualmente eu coloco um delineador e um rímel só para não esquecer como aplica-los, e porque gosto de ver as janelas da minha alma enfeitadas quanto encaram novidades. Penduro nas orelhas brincos que comprei de uma vendedora ambulante, amarro no tornozelo uma pulseirinha que encontrei no mar de Padang Padang e o meu sarong passou a virar saia, vestido, blusa e uma echarpe pros dias de frios imprevistos. Eu sou montada com pedaços do que achei na estrada. E confesso que adoro meu novo look. Carrego no corpo todos os vestígios de uma vida não higienizada, mas muito bem vivida.

Calma, mãe. Eu sigo lavando bem atrás das orelhas. Mas como falei, viajar é um estado de constante encardimento. A alma, entretanto, essa anda límpida. Com cheirinho de nova.

Imagem de capa: Sara Borbala Balogh, Shutterstock

Antônia no Divã

Uma questionadora fervorosa das regras da vida. Viajante viciada em processo de recuperação. Entusiasta da escrita. Uma garota no divã figurado e literal. Autora do blog antonianodiva.com.br.

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