Sei que eu sou muitos. Quem me ensinou isso foi um Demônio velho, o mesmo que ensinou psicologia a Jesus. Quando Jesus lhe perguntou “Qual é o teu nome?”, ele respondeu, numa mistura de verdade e gozação: “Meu nome é Legião porque somos.” Coisa maluca: o “eu”, singular na gramática, é plural na psicologia.
Eu sou muitos. Tem-se a impressão de que se trata da mesma pessoa porque o corpo é o mesmo. De fato o corpo é o mesmo. Mas os “eus” que moram nele são muitos.
Sabemos que são muitos por causa da música que cada um toca. A letra não importa. Pode até ser que a letra seja a mesma. O que faz a diferença é a música. Cada “eu” toca uma música diferente: oboé, violino, tímpano, prato, trombone. Juntos poderiam forma uma orquestra. Não formam. Cada “eu” toca o que lhe dá na telha. Como no filme Ensaio de Orquestra. Esqueci-me do nome do diretor: terá sido Fellini? Merece ser visto.
Por vezes os “eus”se odeiam. Muitos suicídios poderiam ser explicados como assassinatos: um “eu” não gosta da música do outro e o mata. Foi o caso de um meu primo. Quando tínhamos sete anos de idade e brincávamos de soldadinhos de chumbo, ele já estava fazendo um dicionário comparativo de quatro línguas: português, inglês, francês e alemão. Quando tirava 98 na prova ele batia com a mão na testa e dizia, arrasado: “Fracassei”. O “eu” que batia na testa era o “eu” que não suportava não ser perfeito. O “eu” que levava o tapa na testa era o eu que não havia conseguido tirar 100 na prova. Um dia o primeiro “eu” se cansou de dar tapas na testa do segundo “eu”. Adotou uma medida definitiva. Obrigou-o a lançar-se pela janela do 17° andar.
O português correto diz: “Eu sou”. Sujeito singular; verbo no singular. Mas quem aprendeu com Sócrates, quem se conhece a si mesmo, sabe que a alma não coincide com a gramática. A alma diz: “Eu somos”. E diz bem. Pergunto-me: “Qual dos muitos ‘eus’ eu sou?”
Albert Camus declara, no seu livro O homem em revolta, que o homem é o único ser que se recusa a ser o que ele é. Essa afirmação encontra uma ilustração perfeita num incidente banal, descrito por Barthes no seu livro A câmara clara.
A partir do momento em que me sinto olhado pela objetiva da câmara fotográfica, tudo muda: ponho-me a “posar”, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseando-me antecipadamente em imagem.
Olho para a foto. Sofro. O fotógrafo me pegou distraído. Não saí bem. Não me reconheço naquela imagem. Sou muito mais bonito. Sofro mais ainda quando os amigos confirmam: “Como você saiu bem!” O que eles disseram é que sou daquele jeito mesmo. Não posso reclamar do fotógrafo. Reclamo do meu próprio corpo. Recuso-me a ser daquele jeito. É preciso ficar atento. Que não me fotografem desprevenido. Se me perceber sendo fotografado, farei pose. A pose é o sutil movimento que faço com o corpo no intuito de fazê-lo coincidir com a escorregadia imagem que amo e que me escapa. A imagem que amo está fora do corpo. Recuso-me a ser a minha imagem desprevenida. É preciso o movimento da pose para coincidir com ela. Quero ser uma imagem bela.
O mito de Narciso conta a verdade sobre os homens. Narciso aceitou morrer para não se separar da bela imagem sua. Aquele que, como Narciso, vive a coincidência da imagem real com a imagem amada não precisa fazer pose. Está pronto para morrer. A morte eternaliza a imagem.
Dizem os religiosos que a existência humana se justifica moralmente. Deus deseja que sejamos bons. Discordo. A existência humana se justifica esteticamente. Somos destinados à beleza. Deus, Criador, buscou em primeiro lugar a beleza. O Paraíso é a consumação da beleza. Deus olhava para o jardim e se alegrava: era belo! No Paraíso não havia ética ou moral. Só havia estética. Os santos que a Igreja canonizou por causa da sua bondade eram movidos pelo desejo de que, por sua bondade, Deus os achasse belos. A beleza gera a bondade. Quando nos sentimos feios somos possuídos pela inveja e por desejos de vingança. Invejosos e vingadores são pessoas que sofrem por se sentirem feias.
Beleza não é coisa física. Não pode ser fotografada. É a música que sai do corpo. Nisso somos iguais aos poemas. Um poema, segundo Fernando Pessoa, são palavras por cujos interstícios se ouve uma melodia tão bela que faz chorar. A beleza do poema não se encontra naquilo que ele é mas, precisamente, naquilo que ele não é: o não-dito onde a música nasce.
De todos os “eus”, qual deles eu sou? Eu sou o rosto belo. É esse que eu amo – precisamente o que escorrega e tento capturá-lo na pose! Porque esse é o “eu” que eu amo, esse é o “eu” que o meu amor elege como meu verdadeiro “eu”. Os outros “eus” são intrusos, demônios que me habitam e que também dizem “eu” E ainda há quem duvide da existência dos demônios! Como duvidar? Se eles moram em mim, se apossam do meu corpo e me fazem feio – mau! Se, nos momentos em que se apossam do meu rosto, eu visse minha imagem refletida num espelho, talvez morresse de horror ou quebrasse o espelho.
Bom seria que eu não mais me lembrasse desse outro que sou e do seu rosto deformado. Mas a memória não deixa. Ela coloca diante de mim o outro rosto que não quero ser. Como na novela O retrato de Dorian Gray. Ao fazer isso a memória destrói a magia da “pose”: ela não permite que eu me engane. Alberto Caeiro sabia da crueldade da memória: quando me lembro de como uma coisa foi, meus olhos não conseguem vê-la como ela é, agora:
A recordação é uma traição à Natureza.
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar não é ver.
A cada dia somos novos. Mas a memória do que fui ontem estraga a novidade do ser. Ah! Que bom seria se fôssemos como os pássaros:
Antes do voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve.
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
Pelo rasto se reconhece o animal. A memória é o rasto que deixamos no chão.
Brigas de casais são exercícios de memória. Dizem que estão brigando por isso ou por aquilo. Mentira. Brigam sempre pelos rastos. Invocam os rastos, aquilo que fui ontem para destruir o belo rosto que amo. Não adianta que hoje eu seja uma ave. “Você me diz que é uma ave? Mas esses rastos me dizem que ontem você foi um macaco… Sua pose não me engana…”
Perdoar é esquecer. Deus é esquecimento. Quando ele perdoa os rastos desaparecem. Perdoar é apagar da memória o rasto/rosto deformado de ontem.
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.
“Te conheço…” – diz um para o outro. “Minha memória diz quem tu és. Te conheço – nunca te verei pela primeira vez. Teu rosto, eu o conheço como a soma dos teus rastos…” Aqui termina uma estória de amor porque o amor só sobrevive onde há o perdão do esquecimento.
Somos Narciso. Estamos à procura de olhos nos quais nossa imagem bela apareça refletida. Queremos ser belos. Se formos belos, seremos bons.
Livro: Concerto para corpo e alma
Autor: Rubem Alves
Ano: 1998
Editora: Papirus
Crônica encontrada em : Flavio Hastenreiter
Imagem de capa: Reprodução
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