Rândyna da Cunha

Podem as reclamações frequentes se transformarem em doença?– uma reflexão pessoal.

Hoje ao dar uma primeira passada pelo Facebook, me deparei, sem surpresa, com uma série de postagens de reclamação ou do tipo “eu odeio”. É gente odiando o espírito natalino e as pessoas que só ajudam nessa época do ano; é gente reclamando do cheiro do cachorro do vizinho; gente reclamando do cônjuge que tem ou reclamando por não ter nenhum; reclamação sobre pai ausente; reclamando da política, sem nada fazer para mudar o mundo; é reclamação por ter ficado preso no engarrafamento; é reclamação sobre a novela da Globo, enfim, tanta coisa, que arde os olhos. E, em meio a todas essas postagens, me deparei com uma postagem de uma querida leitora – a quem admiro em segredo – sobre o filho. Ela está passando pelo difícil processo de luto pela perda recente e trágica de um dos filhos. Lendo a postagem dela, eu refleti sobre duas coisas.

Há uns 3 anos atrás eu tive um BIRADS – III septado (cisto no seio com risco cancerígeno médio) e foi uma fase muito difícil. Encarar a palavra “câncer”, ainda que na possibilidade, é a coisa mais agressiva que alguém pode enfrentar. É uma sensação de medo, misturada com impotência, que não se explica. Ali eu me vi sem tudo, me vi deixando a vida; me vi não vendo os meus sobrinhos nascerem; me vi não estando ao lado dos meus pais no momento da passagem deles; me vi não tendo os meus filhos; me vi perdendo o último episódio de The Walking Dead; me vi fazendo as pessoas sofrerem; me vi saindo da vida sem pedir todos os perdões que preciso pedir e sem ter tido tempo para perdoar aqueles que me feriram; me vi nunca mais tomando um sorvete de pistache com calda quente de chocolate; me vi nunca mais vendo os sorrisos de quem eu amo; me vi deixando tudo para trás, desde as coisas mais triviais às mais importantes…

Naquela época eu era outra pessoa. Eu era muito reclamona – ainda sou – mas eu era compulsivamente reclamona. Eu era uma pessoa que enfrentava a vida, eu não amava a vida. Eu era como as pessoas das postagens que li: vivia para reclamar, porque eu achava que a vida não me agradava. Eu estava amargamente insatisfeita com tudo. Meu copo estava sempre meio vazio e nunca meio cheio. Consequentemente, quando veio o BIRADS III, meu impacto inicial foi pensar na morte. Uma tristeza profunda me tomou e eu aceitei que talvez fosse morrer. O fato de o cisto ser septado era assustador, porque dificultava a interpretação médica. Eu não conseguia pensar num objetivo praquilo, além da morte. Acontece que o tempo foi passando, as consultas e exames vieram frequentemente e algo dentro de mim mudou. Eu comecei a ver a minha vida passada como um presente, lembrei-me de que na maior parte do tempo eu fui feliz; era de sorrisos quentes e abraços macios que eu mais me lembrava. Percebi que, na verdade, eu reclamava por hábito e não por necessidade. Eu era uma pessoa muito estressada. Só conseguia ficar atrás do volante se fosse xingando; acordava com raiva de ter que acordar (levava meia hora apenas acordando); se fosse comprar algo e não desse certo, passava o dia emburrada. Realmente, eu não amava a vida. A experiência do BIRRADS me mudou, me mostrou que minha vida foi uma vida muito feliz sim. E comecei a perceber aquela situação como algo necessário para eu me tornar uma pessoa melhor, independente da conclusão da história. Foram 3 meses de médico em médico, exame em exame; e, no fim, Deus me curou. Foi uma cura divina mesmo: um dia a possibilidade de um câncer maligno estava ali e no outro tinha ido embora. SIMPLES ASSIM. Hoje não há o menor sinal de septo ou de lesão e, no início do ano, fui finalmente liberada do acompanhamento semestral. É como se isso, fisicamente, jamais tivesse me acontecido. E eu aprendi a dar graças, apenas por estar viva, por sentir o ar preencher os meus pulmões.

Por outro lado, ver o sofrimento da mãe pela morte do filho, me fez refletir sobre o seguinte: e se perdêssemos hoje tudo aquilo que dizemos nos incomodar? A mãe que pega no pé para que a gente arrume o quarto; o pai que chega emburrado do trabalho e fica calado; o marido que só sabe falar “cadê”; a esposa que fala e fala e fala sem parar; os filhos que choram o tempo todo, se jogam no chão do mercado e nos enchem de gastos; o trabalho com suas agruras tão comuns; as louças encalhadas na pia; o carro com o pneu furado; a cachorro que come todos os sapatos…

Sofremos até mesmo por aquilo que nunca tivemos. Quantas pessoas não sofrem pela falta do amor verdadeiro, sem jamais tê-lo conhecido? Imagine perder as coisas que você conhece, que te acompanham ao longo da vida?

Todas as vezes em que reclamamos sobre aquilo que forma a nossa vida, estamos também representando a sua inutilidade para nós e dizendo que podem ser tirados da nossa vida. Podemos nos chatear e desabafar, mas a reclamação é a queixa persistente a respeito de algo que nos incomoda e se nos incomoda, deve ser retirado de nossas vidas. Portanto, cuidado ao perder o dia alimentando reclamações, eu aprendi a duras penas que elas podem virar câncer.

A vida pode ser uma experiência positiva, dependendo do ponto de vista pelo qual olhamos. Sair do salão de beleza com as unhas feitas; descansar após uma pelada de fim de semana; comer sua refeição preferida; filmar o sorriso dos filhos; ajudar alguém; receber um afago do seu pet. Todas essas pequenas coisas acabam de repente quando morremos, algumas delas a maioria das pessoas sequer têm. Quantas vezes eu dormi afagando a barriga vazia e chorando por não saber se algum dia haveria um filho ali dentro, enquanto tantas desprezam essa relação maior que alguém pode ter na vida e tratam os filhos com displicência. Ouvi alguém dizer que “vivia meu sonho” e, à época, eu era boba demais, imatura demais para não deixar que isso me atingisse, eu deixei doer e veja só, meu sonho estou vivendo agora, como eu sempre quis e imaginei. Aquele momento vivido por esse alguém jamais, nem em 100 anos, seria meu sonho. Meu sonho é minha vida agora, é o meu hoje, é meu Samuel, crescendo dentro do meu ventre, em graça e paz, rodeado pelo meu amor, pelo amor incondicional da minha família e pelo amor puro e ingênuo do pai dele. Meu sonho era uma família legítima e livre de apontamentos. Meu sonho era meu e ninguém jamais poderia vive-lo.

Quando eu me transformei, o mundo ao meu redor se transformou também. Quando eu aprendi a amar a vida, a ser grata por tudo que me aconteceu, pelas pessoas que conheci; as coisas simplesmente aconteceram. Hoje eu não deixo mais a reflexão de vida para o fim do ano, eu a faço diariamente. Todos os dias eu me pergunto como posso ser melhor e tenho evoluído. É muito difícil, mas a graça é essa: nós não precisamos ser sempre os mesmos, podemos e devemos mudar. Mudar é uma capacidade de quem é forte.

Hoje minha prece é para que reclamemos menos e amemos mais a vida, assim, criaremos ao nosso redor as condições que os sonhos precisam para acontecer.

Imagem de capa: UVgreen, Shutterstock

Rândyna da Cunha

Rândyna da Cunha nasceu em Brasília, Distrito Federal, em 1983. Graduada em Letras e Direito, trabalha como empregada pública e professora. Tem contos publicados em diversas revistas literárias brasileiras, como Philos, Avessa e Subversa. Foi selecionada no IX Concurso Literário de Presidente Prudente. Participou da antologia Folclore Nacional: Contos Regionalistas da Editora Illuminare e das coletâneas literárias Vendetta e Tratado Oculto do Horror, da Andross Editora- http://lattes.cnpq.br/7664662820933367

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