Matheus de Souza

Precisamos conversar sobre esse negócio de “largar tudo e viajar o mundo”

Há um certo fetichismo sobre esse negócio de largar tudo para viajar o mundo.

Perdi a conta de quantas matérias do tipo já li por aí.

Tem o cara que largou tudo para morar em algum lugar remoto — no Sudoeste Asiático, de preferência.

Tem a menina que largou tudo para viajar sozinha com uma mochila nas costas durante um período sabático — e certamente vai escrever um livro sobre isso.

Sempre há o relato de um casal que largou tudo para uma viagem de volta ao mundo — fazer isso numa Kombi é bônus.

E, de vez em quando, também surge um artigo sobre algum emprego dos sonhos — tipo largar tudo para ser o responsável por cuidar de alguma ilha paradisíaca no Oceano Pacífico.

Embora os personagens dos exemplos acima existam no mundo real — ainda que em escala reduzida — e suas histórias sejam inspiradoras, na minha opinião, esse tipo de matéria é um baita desserviço. Baita mesmo. Vou até escrever em negrito. Baita desserviço.

Sim. E o problema não são esses caras. Eles estão vivendo suas vidas da maneira que lhes convém. O problema está na maneira como essas matérias são produzidas e conduzidas por jornalistas e produtores de conteúdo parte ingênuos; parte buscadores de cliques. Esses textos e entrevistas, geralmente, só mostram a suposta vida perfeita do nômade digital — como essa galera é chamada.

E todo mundo quer uma vida perfeita, né? Então mais e mais matérias do tipo surgem todos os meses. E mais e mais cliques são feitos.

Mas a grande verdade é que você só “larga tudo” se recebe uma herança ou têm pais ricos pra te bancar.

Não existe largar tudo do dia pra noite pro cara que é CLT ou pra menina que está desempregada. Ou vice-versa. Se os dois formarem um casal, então, esquece.

Falo isso porque eu e minha esposa viramos em menos de 12 meses o típico casal da manchete “conheça o casal que largou tudo para viajar o mundo”.

Basta olhar nossos perfis no Instagram aqui e aqui.

O que vocês veem?

Foto: Este sou eu em Chiang Mai, na Tailândia, 10 meses após ~largar tudo pra viajar o mundo~, cuidando de elefantes que sofriam maus-tratos em zoológicos, circos e outros lugares do tipo feitos para turistas.

Os desavisados, provavelmente, enxergam um casal de jovens que largou tudo e está viajando o mundo e curtindo a vida por aí.

Pela descrição, quem não sonha com algo do tipo?

É a tal da vida perfeita materializada em fotos incríveis.

E a “culpa”, no final das contas, é nossa. Adoramos fotografia, nossas fotos são bem produzidas (a Laís é fotógrafa profissional) e, claro, como qualquer ser humano numa rede social, mostramos ~quase~ sempre as melhores passagens e paisagens dos nossos dias. Quem nunca, né? Faço aqui meu mea-culpa.

Mas é exatamente por isso que escrevo esse texto. Ou manifesto, como preferir.

Não quero que sejamos apenas mais uma manchete de casal que largou tudo para viajar o mundo. Não quero promover o desserviço. Não quero promover mais angústia para quem já está angustiado. Quero te falar a real sobre largar tudo. E a real vai muito além de bater foto fazendo carinho em elefante.

O que há por trás do famigerado ~largar tudo~

As histórias dos nômades digitais são sempre inspiradoras. Provocam aquele sonho adolescente adormecido em cada trabalhador insatisfeito que as lê.

Então, o tal trabalhador fecha a aba do seu navegador com a matéria sobre um dos exemplos que citei no início do texto e logo pensa: “Isso é impossível. Essas pessoas são ricas. Aí é fácil!”.

” Aí é fácil!”.
A resposta padrão para quem gostaria muito de viver tal experiência, mas tem medo de tomar uma atitude e brada clichês do tipo como autodefesa para suas próprias frustrações.

Esse é o senso comum agindo. E não culpo quem pensa assim. Eu também pensava. Até buscar as histórias reais por trás disso tudo e entender como funciona o famoso largar tudo.

Para começo de conversa, existe uma grande diferença entre sonho e objetivo.

Sonho é você querer algo e não agir para que isso aconteça. Sem ação, esse “algo” nunca deixará de ser um sonho.

Objetivo é você querer algo e traçar um plano para que isso aconteça. Com ação, esse “algo” tem mais chances de acontecer — sim, não existem garantias.

Seguindo o raciocínio, sim: existem os nômades digitais do “aí é fácil”. Porém, esses caras representam uma parcela mínima dos trabalhadores remotos ao redor do mundo. Mínima. Vai por mim.

Como já falei em outro texto, o nomadismo digital é, principalmente, uma questão de escolhas. É sobre como e com o quê gastar o seu salário.

Por muito tempo eu e minha esposa estivemos insatisfeitos em nossos antigos empregos. Muito tempo.

O que aprendemos é que, se você está insatisfeito com o seu trabalho, não adianta apenas ficar sonhando com uma realidade diferente. Você tem que se mexer.

Em 2015 decidimos: temos que mudar nossa realidade. Quando “batemos o pé”, o nomadismo digital deixou de ser um sonho e se tornou um objetivo. Nós nos mexemos.

Porém, não largamos tudo lá em 2015. Nós nos planejamos. Fizemos contas. Então fizemos mais contas. E mais contas. E nem tudo saiu como o planejado, então fizemos mais contas. E fomos guardando dinheiro.

No começo de 2017 tínhamos uma reserva financeira razoável. E só então “largamos tudo”. Só então saímos daqueles empregos onde estávamos insatisfeitos — percebem como o termo “largar tudo” não é apropriado?

O apropriado, neste caso, seria dizer que nós nos planejamos, agimos e só agora, dois anos depois, estamos colhendo os frutos. Mas e como fazer que alguém clique numa matéria com um título tão chato e clichê, não é mesmo?

“Casal faz planejamento, trabalha duro e dois anos depois colhe os frutos”.
Acho que não venderia, né?

De modo geral, as pessoas querem que as coisas caiam dos céus, querem ser abençoadas por Deus, mas não querem passar pelo ônus até que o bônus apareça.

Aliás, essa história não é exclusividade minha e da Laís.

É a história dos nômades digitais que não se enquadram no grupo do “aí é fácil”.

Pedindo as contas do jeito certo

Largar tudo sem planejamento é se atirar no mercado sem paraquedas. E cair de cabeça. Em cima de algo pontiagudo — e enferrujado, com grandes chances de você pegar tétano. Acho que fui claro nessa parte, né? Não faça isso. Não importa o quê diabos seu guru favorito diga.

As pessoas se sentem insatisfeitas em seus empregos por diversos motivos. Mas, no meio dessa galera existe um perfil interessante: o dos que sentem uma necessidade pulsante de liberdade e flexibilidade. Geralmente, são esses os caras que sonham com o nomadismo digital.

O problema é que muitos, na ânsia de largar tudo, saem de seus empregos sem o menor planejamento. Quando a grana acaba, logo precisam de um novo trabalho. Aceitam o primeiro que aparece e novamente se veem na mesma situação: estão insatisfeitos. É uma bola de neve.

Por isso, se você quer largar seu emprego, seja para se tornar um nômade digital ou não, peça as contas do jeito certo.

De novo: largar tudo, de uma hora para outra, só pra quem é rico.

O que fizemos e recomendo é:

Calcule quanto você precisa para viver bem por 1 ano.

Se você tem filhos, o que não é o nosso caso, essa conta deve levar muito mais fatores em conta. Mas aí é com você, não tenho experiência nesse sentido para te ajudar.

Pagar os boletos, arcar com sua moradia, se alimentar e ter algum lazer. Continue no seu emprego (e, por favor, trabalhe direito — você não quer ser demitido, né?) e, quando tiver o montante do seu cálculo, peça as contas. Largar tudo é bem mais entediante do que você imaginava, né?

Imprevistos acontecem, você pode pensar que é difícil juntar todo esse dinheiro, mas, vai por mim: escolhas.

A vida é feita de escolhas.

Larguei tudo para viajar o mundo, mas tenho um CEP para chamar de meu

Nessa de “escolhas”, alguns nômades são desapegados ao ponto de venderem todos os seus bens.

Eu os admiro por isso, mas não é o nosso caso.

Eu e a Laís não fomos tão radicais: escrevo esse texto diretamente de um café em Chiang Mai, na Tailândia, após viajarmos e trabalharmos no México e na Coreia do Sul também em 2017, mas ainda assim tenho um CEP para chamar de meu.

Nossa “base” é em Tubarão, no estado de Santa Catarina. É nessa região que estão nossos familiares, amigos e apartamento. Entre uma viagem e outra sempre podemos voltar para aquilo que chamamos de casa. Ah, e também não estamos o tempo todo viajando. Durante nosso primeiro ano como nômades digitais passamos mais tempo no Brasil do que no exterior — e em 2018 também será assim.

Digo isso porque muitos me perguntam sobre como lidamos com a distância dos entes queridos e tudo mais — já que, para quem vê de fora, largamos tudo.

Ter esse vínculo é importante. Os meios de comunicação instantânea também ajudam a não perdermos o contato com a galera no Brasil. Hoje é tudo tão digital que, no final das contas, é como se ainda estivéssemos em Tubarão. Nem dá tempo de sentir saudades.

O mito das “férias eternas”

Aqui saímos do “largar tudo” e vamos para o “viajar o mundo”.

Se você clicou nos links dos nossos perfis no Instagram percebeu a quantidade de fotos nossas viajando por aí. Voltando ao mea-culpa, nossas fotos dão a impressão de que não fazemos nada além de ir para a praia ou fazer carinho em elefantes. É assim com qualquer perfil de nômade digital que sigo. Sempre foi assim. E essa talvez seja a razão da quantidade de matérias sobre largar tudo para viajar o mundo.

Inconscientemente (ou não, dependendo do caso), vendemos esse lifestyle. A vida perfeita. As praias paradisíacas. As paisagens de tirar o fôlego. Os MacBooks. Os elefantes.

O problema é que essa impressão de férias eternas é completamente equivocada.

Quando buscamos o nomadismo digital como estilo de vida, nossa principal motivação foi essa sensação de liberdade. Queríamos ter flexibilidade em nossos horários e, principalmente, a oportunidade de viajar o mundo sem ter a necessidade de esperar o período de férias na firma — aliás, ter essa disponibilidade de viajar em qualquer época do ano nos possibilita aproveitarmos promoções incríveis de passagens aéreas.

Antes de sermos nômades digitais, somos trabalhadores remotos. Como tal, quando estamos no Brasil, por exemplo, trabalhamos no famoso home office.

A diferença é que quando estamos em Tubarão, assim que o expediente acaba, geralmente ficamos em nosso apartamento fazendo coisas banais do dia a dia. A Laís cozinha, eu lavo a louça. Ela vai pra academia, eu jogo videogame. Ambos limpam o apartamento. E, antes de dormir, geralmente, assistimos algo na Netflix. Essa é nossa vida quando estamos no Brasil. Nada glamurosa, né?

Isso acontece porque já conhecemos cada canto de Tubarão. Quando estamos fora do Brasil, assim que o expediente encerra, fazemos algum programa turístico. Daí as praias. Daí os elefantes.

Como temos flexibilidade total em nossos horários e trabalhamos com prazos, podemos nos organizar para visitarmos um santuário de elefantes durante o dia e trabalharmos a noite. Coisas do tipo.

O pessoal do Instagram não vê, mas entre cada foto postada tem muito trabalho duro por trás.

Peraí, então quer dizer que o nomadismo digital não é tão legal assim?

Uma coisa é uma coisa, outra coisa e outra coisa!

Para nós dois, Matheus e Laís, o nomadismo digital é legal demais! É tudo o que sempre sonhamos. Valeu a pena cada segundo de stress durante o período de planejamento e ação.

Arejando a cabeça durante o expediente numa “cafebreria” mexicana em setembro deste ano. Pequenas vantagens do nomadismo digital…

Meu ponto é que largar tudo, no sentido literal da expressão, como vem sendo amplamente sugerido por aí, não vai resolver a vida de ninguém.

Pelo contrário.

Largar tudo, sem planejamento, vai te trazer mais problemas, mais contas para pagar e mais insatisfação.

Pense nisso antes de agir por impulso após ler uma dessas matérias sobre alguém que largou tudo para viajar o mundo.

Publicado originalmente em matheusdesouza.com. Reproduzido com autorização.

Imagem de capa: Ann Haritonenko, Shutterstock

Matheus de Souza

Escritor e viajante. Autor de "Nômade Digital", livro finalista do Prêmio Jabuti 2020 na categoria Economia Criativa. LinkedIn Top Voice em 2016.

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Matheus de Souza

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