André J. Gomes

Quando o frio apertar, abrace apertado quem está ao seu lado.

Hoje fez frio. Veio como havia muito não vinha. Gelou o ar, esfriou o sofá da sala, resgatou meias, casacos e dores do fundo de uma gaveta que emperra como não quisesse abrir. Chegou sabe-se lá de onde, do pacífico, dos polos congelados, do sul do país. Não importa. Aqui faz frio.

Em seu sopro fresco e úmido, esse frio há de aquecer os ímpetos de alguém. Há de animar as almas boas que se reúnem no calor de suas mesas, em volta de suas histórias contadas na fumaça perfumada das panelas bafejando decência. A mim, o frio me reencontra desprevenido e ridículo. Como visita inesperada, entra pelas frestas das horas suspensas e me congela a alma. Vem com o medo da solidão e da dor, com a frieza do dia a dia que me atropela em seus afazeres obrigatórios, com a incerteza de meus caminhos e a angústia que os corta na chuva fina.

Mas o frio também traz uma alegria mansa e um sentimento tímido, frágil, de que alguém em algum lugar deste mundo treme as mesmas dúvidas que eu. Nos quatro cômodos da casa fechada, o vento penetra impertinente e me sopra sons e cheiros de algum lugar onde alguém, como eu, também espera.

Abro a janela, a brisa cruel me bate na cara e me enche de esperança: alguém por aí me aguarda no frio da chuva, me imagina nas horas vazias. E essa presença é tão certa que me dá vontade de lhe escrever uma carta, um bilhete, um alô ou qualquer sinal que dê a esse alguém a impressão de que eu também espero. Um pedido para que não desista, porque mais dia, menos dia nos encontramos. Enquanto isso, o vento frio nos mantém juntos na distância.

Em minha carta, conto das tantas vezes em que ganhei o mundo buscando quem me espera. Refaço rotas, retomo caminhos, relembro instantes exatos em que me perguntei “então é você?” Em cada encontro, há sempre uma certeza calorosa. É você. Depois nos separamos sem mais, amarrados a dois caminhões que se cruzam e depois viajam em direções opostas. O frio volta a ventar suas questões. E não era mais você.

Escrevo como louco o que me nasce na cabeça, cresce no coração e parte pelos dedos. Envio as cartas pelo vento, dizendo baixinho cada palavra na fresta da janela. Quem sabe alguém ouça. Quem sabe seja você. E você vai notar que ali, escondido entre vírgulas e adjetivos, há um sujeito que sofre porque tem medo e tem amor. Alguém que se viciou em saudade e solidão. Que chora olhando o céu e assiste quieto à dança de suas lembranças quando o vento canta, anunciando o outono que chega e derruba as folhas, e desperta uma vontade dolorida de sabe-se lá o quê.

Quem sabe alguém leia. Quem sabe seja você. Quem sabe também me mande uma cartinha e me salve o dia. Afinal, é para isso mesmo que servem os seres humanos, não é? Para se salvarem uns aos outros. De si mesmos. Do frio que está fazendo hoje. Das paredes geladas de uma casa nos primeiros dias do outono.

Imagem de capa: Versta, Shutterstock

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

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André J. Gomes

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