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Há alguns dias, assisti o documentário “What Happened, Miss Simone?”, produzido pela Netflix e dirigido pela cineasta Liz Garbus, sobre a carreira da cantora americana Nina Simone e, como tudo o que realmente nos marca e emociona, continuo pensando sobre tudo o que eu vi, ouvi e senti.
Em pouco mais de uma hora e meia, nossas emoções são bombardeadas, ao conhecermos a história da menina de pele cor de ébano que cresceu em meio à segregação racial sem entender exatamente do que se tratava, que estudou com afinco para se tornar a primeira pianista de música clássica negra dos EUA e que caminhou para uma juventude, em que sua cor fecharia mais portas do que o seu talento, na época, seria capaz de abrir.
Em bares noturnos e adotando o nome de Nina Simone, conseguiu o sustento da família na cidade grande. Após a fama e já casada com um marido abusivo que se tornou seu agente, Nina se sentia escravizada pelo trabalho e pela agenda sempre excessivamente lotada. Havia uma relação controversa com a fama e com o preço a pagar por tanta exposição, tais como o cansaço constante, a impessoalidade da vida em hotéis e camarins, e a distância da família.
Durante anos, os amigos acompanharam suas oscilações de humor. Nina, onde quer que estivesse, era capaz de parar um show para pedir que alguém da plateia ficasse em silêncio ou se sentasse. Esse humor volátil, com o passar dos anos e o acúmulo de estresse, teria ficado cada vez mais imprevisível, principalmente, depois de sua forte militância política a favor da igualdade entre brancos e negros. Nina esteve presente em todo o movimento que marcou a década de 60 nos Estados Unidos. Esteve lado a lado com Martin Luther King, embora acreditasse em uma abordagem que usasse da força para conseguir mudanças. E, devido a isso e ao direcionamento de suas canções para temáticas da causa, sua carreira foi afetada.
Em um momento de sua carreira, abandonou tudo, inclusive sua filha, e foi morar na África. Tempos depois, mandou buscar sua filha, mas, a menina não encontrou mais a mesma mãe e sim uma mulher mais violenta e que a espanca frente a qualquer adversidade. Nina, sem renda e após dissipar todos os bens, volta para tentar reconstruir a carreira. Dessa vez, na Europa. Em Paris, trabalha em um local tão ruim, que nem é reconhecida… as pessoas pensam que não é ela. Tempos depois, alguns de seus amigos a ajudam a reconstruir sua carreira. É feito o diagnóstico de transtorno maníaco-depressivo (atual Transtorno Bipolar) e ela passa a ser tratada e se mantém mais estável até o fim de sua vida.
Quais seriam os limites humanos que nos permitem manter ou perder a nossa sanidade? Racismo, um casamento abusivo, envolvimento político fortemente militante em uma época de profunda repressão, feridas de uma infância, em que passava cerca de 7 horas por dia estudando piano, agendas lotadas e quase nenhum descanso? Solidão… como uma alma tão sensível como a de uma artista com a intensidade de Nina Simone poderia sobreviver intacta a tantas agressões e provas de realidade?
Enquanto a arte era um contraponto ela pode continuar, mas, quando a música se tornou também um peso, o que lhe restaria?
O documentário enfoca a carreira da atriz dando diversos destaques para suas oscilações de humor e, mesmo no final de sua vida, eles enfatizam o diagnóstico de bipolaridade e a cronicidade da doença para justificar as mudanças bruscas de comportamento.
A questão é, dentro de sua profunda humanidade, teria Nina Simone se perdido em uma patologia ou em sua própria sensibilidade que, contraditoriamente ao que pensaríamos de uma cantora, perdeu sua voz?
Nina foi uma vitoriosa em todos os sentidos e, mesmo quando talvez não tenha feito suas melhores escolhas (não cabe a nós julgar), acertou tentando ser fiel a si mesma e aos seus sentimentos. Tentou a todo custo libertar-se do racismo e ajudar seus semelhantes, lutou para libertar-se do marido abusivo, lutou para libertar-se até de si mesma, quando mal conseguia sobreviver à convivência com a pessoa que se tornou.
Sua filha fala dela com lágrimas e amor, o amor de quem entendeu o que a mãe sofreu para deixar de ser Eunice Kathleen Waymon, a filha da ministra metodista que tocava piano na igreja e tornar-se o ícone Nina Simone.
Nina se faz em nós, eterna lembrança não somente por que foi pianista, cantora, compositora ou mesmo ativista pelos direitos civis norteamericanos. Nina rasga nossa compreensão e penetra nossa alma porque, mais do que tudo isso, mais do que alguém que sofreu com um transtorno bipolar e um marido abusivo, mais do que aquela que cantou, porque precisava do dinheiro ou trocou de nome, porque temia envergonhar a família religiosa, ela deu voz à mais elevada forma de expressão humana, ela foi sensibilidade extrema em forma de música e de ideias.
Faleceu dormindo, depois de lutar vários anos contra um câncer de mama.
Penso, entretanto, que o que realmente a matou foi a sensibilidade crônica…
Obrigada Nina, nossa linda e eterna menina da pele cor de ébano.
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