Imagem de capa: Oksana Yurlova, Shutterstock

Não lhe dês tudo. Há tempos, li um artigo escrito no masculino em que no meio de todas as palavras que me iam prendendo a atenção, existiram três ou quatro que me prenderam a respiração. Uma das coisas boas que o avançar da idade nos traz é a sabedoria. Não falo da sabedoria dos livros – essa será sempre intemporal. Há quem a aproveite desde sempre e há quem nunca a chegue a aproveitar. Essa sabedoria não tem idade. Falo da sabedoria da vida. Daquela que nos é oferecida pela experiência. Pela experiência que vamos adquirindo com as conquistas, pela experiência que vamos aprendendo com as derrotas, pelo preenchimento que nos chega com um sorriso e pela aprendizagem que fica de uma lágrima vertida.

Essa experiência – a da vida –, por vezes, faz-nos achar que já temos o conhecimento necessário ou, no mínimo, o conhecimento básico sobre quase todos os assuntos. Achamos sempre que já experienciámos quase tudo e que isso é o suficiente para nos dar a bagagem necessária para não voltarmos a errar da próxima vez. Ou pelo menos para já sabermos minimizar os danos. Mas depois há sempre qualquer coisa que nos deita tudo isso por terra. Que nos muda as perguntas e que nos baralha as respostas. As relações humanas hão de ser sempre um dos maiores mistérios da humanidade. Desengane-se quem pensa que é sábio em relação a esse tema. Quem pensa que tudo sabe, arrisca-se, seriamente, a viver para sempre na ignorância. Também eu não sou diferente. Também eu acho que já adquiri toda a teoria – porque é que na prática é sempre tudo tão diferente? – para me saber resguardar de todos os males que se possam atravessar no meu caminho. Falo, obviamente, das tais relações humanas.

Falo mais precisamente das relações entre homem e mulher. E eis que quando acho que já tenho o mestrado em: «Desta vez é que vou ter um relacionamento perfeito e vou ser feliz para sempre», leio um raio de um artigo escrito por um homem e fico com a certeza de que, se calhar, nem o secundário acabaria com sucesso. Aquele artigo caiu em cima de mim como se tivessem decretado oficialmente a terceira guerra mundial nos meios de comunicação social. Então não é que a meio da leitura – que transmitia um ponto de vista nada convencional para quem está a falar no masculino – pude ler, entre outras, as seguintes palavras: «Nunca, jamais dês tudo de ti ao teu parceiro». Petrifiquei! Juro que o meu coração bombeou duas vezes mais rápido naquele momento; juro que o ouvi pulsar mais depressa e juro que aquelas palavras saíram do texto para virem bater de frente comigo tal e qual uma colisão grave frontal. Como não dês tudo de ti? Como assim? Como é que passamos metade da vida a formatarmo-nos para encontrar alguém que saiba apreciar, verdadeiramente, tudo o que temos guardado dentro de nós para, agora, nos virem dizer que o segredo é não dar tudo? Fiquei em choque.

Afinal o «só sei que nada sei» tinha acabado de ter efeito prático. Aos poucos, fui recuperando a respiração e as cores devem-me ter voltado a face. Aos poucos, foi como se este choque frontal tivesse servido para um acordar letárgico em que me encontrava talvez desde sempre. Fui compreendendo as palavras e não as encarei como uma prepotência de alguém que se achava o rei da cocada preta. Não. Li-as como alguém que desmistificava um mito; como alguém que apreciava, verdadeiramente, uma mulher e, acima de tudo, de alguém que a respeita. Então, afinal, o que entendi eu das suas – cruas – palavras? Um homem gosta de admirar uma mulher. Gosta de admirar-lhe os pormenores, os gestos, os trejeitos, os seus mistérios. E, nós, mulheres, o que fazemos? Damos-lhes tudo. Achamos que é o que eles mais querem. Que é o que estão à espera. Aprendemos que essa é talvez a prova cabal de saber amar. Por isso, tantas vezes, esquecemo-nos de nós porque só pensamos no outro. Para o outro. Em função do outro. Mas, ao contrario do que possamos pensar, não é isso que um homem valoriza. Não é isso que faz um homem admirar uma mulher. Não é isso que vai fazer com que um homem fique com uma mulher – agora, que penso nisso, raramente, um homem fica com uma mulher assim (não me estou a referir àquela espécie de homens que fazem do egoísmo a sua maior bandeira. Para esses, só lhes servirão as mulheres que insistem em dar tudo e se contentam em receber nada).

Um homem gosta de admirar a sua mulher, de a cortejar, de a sentir sua e, se lhe deres tudo, resta-lhes nada para admirar. Para desejar. Para querer. Um homem gosta de sentir que te conquista, diariamente, gosta de sentir que ganhou o jogo, mas que ainda tem o campeonato para alcançar. Um homem gosta de [te]explorar, devagarinho, dia a dia, gosta de [te] tornar a sua mulher, de [te] fazer sentir a mais bela delas todas. É assim que ele te vai fazer sentir especial, a única, a que o vai fazer ficar.

Sempre que caímos no erro de darmos tudo; de querermos dar tudo, – e olhem que eu fartei-me errar – o que vamos receber em troca é apenas uma mão cheia de desinteresse. Porque não resta nada para admirar, para conquistar, para descobrir. Esqueçam essa coisa de «o verdadeiro amor é aquele em que damos sem precisar de receber». Bullshit. Somos humanos, porra! Não somos máquinas. E até as próprias máquinas para nos dar algo, requerem um esforço prévio da nossa parte para obtermos o resultado desejado. Que nos dêmos uns aos outros. Sim. É fundamental para que as relações humanas resultem, mas não nos esvaziemos de nós na esperança de que a outra parte só se contenta quando dermos tudo. A única coisa que vamos conseguir é uma vida cheia de nada.

Júlia Domingues

Júlia Domingues. 39 anos. Jurista de formação, criativa por paixão. Sou feita de gargalhada estridente talvez porque acredite que, estridente deva ser a nossa existência. Não para os outros. Para nós. Estamos começados mas não estamos acabados. E , no fim; no regresso a nós, que consigamos, serenamente, dizer: «Ousei viver!». Sou feita de sentir e o que não me cabe no peito, transpiro-o nas palavras e no desenho. Sou mulher e sou feliz.

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Júlia Domingues

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