Ana Macarini

A paixão pode semear o amor e o fim dela pode decretar a sua morte.

Imagem de capa: Everett Collection, Shutterstock

Caso a nossa vida fosse um jogo de baralho, digamos, um “jogo de tranca”, as decisões caberiam muito bem numa analogia com o momento em que decidimos não pegar as cartas abertas na mesa e arriscar na carta do monte fechado. A carta fechada é cheia de possibilidades, desconhecida, misteriosa. Pode ser a nossa saída para virar o jogo. Ou, malograda sorte, pode ser uma carta repetida. Nada pode ser pior do que uma carta repetida, nem mesmo um “três preto” (a carta que tranca o jogo), que tem lá sua utilidade quando decidimos impedir o outro de se dar bem! Decisão tomada; abrimos mão das conhecidas, porém descartadas cartas na mesa e vamos para o monte, arrumadinho de cartas empilhadas, porém secretas. Impossível prever o que virá. E, mesmo que estejamos apenas jogando por diversão, sentiremos aquele friozinho na barriga; a emoção da expectativa: queremos uma carta boa! Queremos “pegar o morto” (outro montinho misterioso de cartas secretamente fechadas); queremos fazer canastra; e, mais que tudo, queremos ganhar!

Quando abrimos a possibilidade para um relacionamento amoroso, é a carta fechada que estamos virando. Não importa que resolvamos tomar a (desastrosa) decisão de transformar em nosso novo amor, o melhor amigo de infância. Assim que ambos forem “promovidos a casal”, passarão por uma assustadora metamorfose ao vivo e a cores, diante dos olhos estupefatos um do outro. O bom e velho confidente, precisará ser poupado de nossos desastres cotidianos. Ele nos olhará com outros olhos e nós o olharemos como a uma verdadeira Caixa de Pandora, cuja curiosa audácia pode nos custar tremendamente caro, caso tenhamos a coragem de destrancá-la.

O funcionamento de um par de seres humanos na dança da conquista é muito mais complicado de se entender do que o mais sofisticado e rebuscado tango argentino. Desde o primeiro olhar, somos arrebatados para dentro de uma sinfonia de sensações desconhecidas que nos fazem agir de maneira tanto estudada quanto irracional. Explosiva combinação, do ensaio com o insano. A paixão é insana; e deliciosa. Quem nunca se apaixonou, talvez não esteja apto a dizer que experimentou a vida. É a paixão que nos impele a experimentar, tocar, sentir, desejar o outro. A paixão é fogo que arde e que se vê! Vê-se nos olhos que brilham, no sorriso que ganha melodia, no corpo que se move pra conversar com o outro corpo, sem proferir uma palavra sequer. É a paixão que planta o amor e é o fim dela que pode decretar a sua morte.

Seria, então, a paixão uma armadilha irresistível; uma teia tecida à nossa volta, à nossa revelia; que nos envolve em suas malhas de prazer e desafio a ponto de nos roubar a capacidade de decisão? Por que nos apaixonamos, afinal? A Antropóloga Helen Fisher, da Universidade Rutger, Nova Jersey, lança uma luz sobre o assunto, utilizando uma explicação lógica para o fenômeno: somos arrebatados pelo impulso primário sexual da procriação, que direcionamos a uma pessoa capaz de nos despertar o desejo. E, todo o resto torna-se secundário, pano de fundo, perda de tempo.

Motivada pela assustadora simplicidade de sua própria teoria, Fisher uniu sua pesquisa aos estudos da Neurocientista Lucy Browm, do Albert Einstein College of Medicine, e ao projeto de pesquisa do Psicólogo Arthur Aron, da Universidade Estadual de Nova York. Os pesquisadores realizaram um trabalho, utilizando a tomografia por ressonância magnética funcional, para acompanhar a atividade cerebral de um grupo de voluntários. Durante os testes, enquanto estavam no interior do tomógrafo, os voluntários eram expostos a imagens da pessoa que amavam e imagens de pessoas conhecidas, mas com as quais houvesse uma relação afetiva neutra. De vez em quando, eram solicitados a contar imagens de frutas ou identificar cores, como forma de distraí-los e acalmar as sensações. “Nessas diferentes situações comparamos a atividade cerebral e percebemos que as duas regiões do cérebro que estavam especialmente envolvidas durante a observação do amado eram partes do núcleo caudado e da área tegmentar ventral (ATV) direita no mesencéfalo” relataram os pesquisadores.

O que há de revelador nessa descoberta é que nessas duas regiões cerebrais há células neurais que se comunicam através da substância mensageira, a dopamina, e reagem de forma sensível àquilo que causa bem-estar, como alimentos saborosos, por exemplo; ou mesmo à possibilidade de experimentá-los. O fato de a paixão estar relacionada a esse “sistema de recompensa” indica que o que estamos habituados a chamar de “sentimento” talvez seja, na verdade, um “estado de motivação” para a busca de algo, comparável à fome, que nos leva a buscar e consumir alimentos. Se pensarmos assim, o cenário fica menos romântico. “Afinal, talvez não nos apaixonemos (como muitas vezes gostamos de pensar) em razão de uma trama bem engendrada do destino ou dos belos olhos do outro, de seu charme e de sua sensualidade. Sob essa óptica o encantamento se vale, antes, de mecanismos neurológicos cuja função é aplacar uma necessidade biológica. E garantir a sobrevivência da melhor forma possível” pondera Fisher.

O fato, é que descobertas científicas dessa natureza têm pouquíssima relevância para os seres irracionais nos quais nos transformamos quando estamos apaixonados. Somos impelidos a construir em torno da recompensa emocional que a paixão nos proporciona, mecanismos para torná-la menos volátil, para fazê-la durar. Nossa natureza gregária é seduzida pela paixão, mas sonha mesmo é com o amor. Queremos a sorte de mergulhar na vida, acompanhados de alguém que já tenha conhecido outros mares, mas que se comprometa a navegar conosco, haja calmaria ou tempestade. O amor é o amante mais maduro da paixão. Ele arrebata, envolve e impulsiona, mas traz de volta outros focos. O amor, ao contrário da paixão, não torna todo o resto secundário. Ele é capaz de entrelaçar todos os elementos envolvidos nas trajetórias dos apaixonados e se renovar a cada transformação.

Quem dera fosse fácil! Não é fácil, nem simples, tampouco descomplicado. Amor exige de nós a nossa porção mais íntegra, leal e honesta. Exige entrega; leveza; alegria e comprometimento. Amar já foi para quem é forte; agora é para que é audacioso. E o fim do amor, é das experiências mais intensas, dolorosas e complexas pela qual podemos passar. Sair inteiro do fim de um amor é uma tarefa para qual nunca estaremos preparados. Nunca será bonito o fim do amor. Chegar ao fim é deparar-se com um lugar que deixou de ser um refúgio acolhedor desde um tempo que já se perdeu no tempo. As risadas gravadas nas camadas mais antigas de tinta da parede, não reverberam mais. Os perfumes e cheiros não se misturam, estão parados, suspensos numa atmosfera tensa, apartados por uma barreira invisível. Os desejos há muito esquecidos em bolhas de ar, flutuam… Querem vagar para além da janela. Não se pode estar junto quando o outro deixou de existir dentro de nós. Não se pode esperar que o que foi quebrado volte a ter a íntegra leveza de antes. É preciso ter coragem pra ser o primeiro a partir. É preciso ter certeza de que se chegou ao fim, para ser o último a sair e apagar a luz.

Ana Macarini

"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"

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