Clara Baccarin

Envelhecer é tornar-se múltiplo

Imagem de capa: AnatSkwong, Shutterstock

Temos o costume de pensar que envelhecer é um caminhar para o fim, é um definhar, murchar, envergar. Quando jovens, a nossa visão mais à frente na vida, o nosso marco de chegada é o topo da montanha (as conquistas que este mundo ainda nos reserva). Quando velhos, a nossa visão mais à frente, o nosso marco de chegada (ou partida) é o vale, a desconhecida planície para onde não queremos caminhar, mas que a gravidade e o tempo se incumbem de nos empurrar, e que representa o fim das aventuras.

Pensamos que, depois do ápice adulto da vida, o caminhar da velhice é um declive, o corpo vai se curvando, a pele enrugando, o pensamento falhando, a importância diminuindo, a vida esvaecendo.

Mas eu gosto de pensar no ato de envelhecer não como o caminhar na montanha, com subida, ápice e descida. Gosto de pensar no envelhecer como o amadurecer de uma árvore, que se fortalece com o tempo, solidifica, e através das sábias curvas de seus galhos que souberam perseguir a luz do sol, acabou aprendendo a chegar mais perto do céu.

Gosto de pensar na velhice não como perda, mas como soma. Me parece que, pelo menos para quem gosta mesmo da vida, envelhecer não é perder a juventude, mas é um somar de personalidades, traços, fases, tempos, eus…

Envelhecer é um agregar, é possuir nesse mesmo corpo gasto, todos os seres que aqui habitaram um dia: a criança, a jovem, a adulta. É lembrar-se de cada uma dessas fases e senti-las ainda presentes aqui dentro.

Envelhecer não é um descartar fases que passaram com o tempo e me transformaram em um outro ser, mais frágil, atrasado e sem esperanças. Envelhecer é possuir nesse corpo curvado a robustez de todas as mulheres que fui, a amplidão de uma vida que foi vivida.

Envelhecer é tornar-se múltiplo. Como a árvore antiga e persistente que se constitui, em matéria e essência, dos anéis de outras épocas. E essa casca enrugada, aparentemente frágil, é força que soube resistir às intemperes do mundo e possui a sabedoria de preservar dentro de si, correndo vivos, rios de seivas e sentimentos.

Clara Baccarin

Clara Baccarin escreve poemas, prosas, letras de música, pensamentos e listas de supermercado. Apaixonada por arte, viagens e natureza, já morou em 3 países, hoje mora num pedaço de mato. Já foi professora, baby-sitter, garçonete, secretária, empresária... Hoje não desgruda mais das letras que são sua sina desde quando se conhece por gente. Formada em Letras, com mestrado em Estudos Literários, tem três livros publicados: o romance ‘Castelos Tropicais’, a coletânea de poemas ‘Instruções para Lavar a Alma’, e o livro de crônicas ‘Vibração e Descompasso’. Além disso, 13 de seus poemas foram musicados e estão no CD – ‘Lavar a Alma’.

Share
Published by
Clara Baccarin

Recent Posts

Falecido Agnaldo Rayol emocionou vizinhos ao cantar ‘Ave Maria’ da varanda durante pandemia; assista

Nesta segunda-feira (4), o Brasil se despede de Agnaldo Rayol, que faleceu aos 86 anos…

1 dia ago

Última apresentação de Agnaldo Rayol foi eternizada em vídeo; lúcido com voz potente

O cantor Agnaldo Rayol, uma das vozes mais marcantes da música brasileira, faleceu na madrugada…

1 dia ago

“Cozinharam nosso cachorro”: tutor denuncia negligência em pet shop após perder cadelinha

A perda de Filó, uma cadela da raça bulldog francês de cerca de dois anos,…

3 dias ago

Chefe explica “teste da xícara de café”, método decisivo usado em entrevistas de emprego

No competitivo mercado de trabalho, a preparação para entrevistas de emprego costuma envolver currículos impecáveis…

3 dias ago

Você sabia que dormir abraçado ao travesseiro pode indicar sua personalidade?

Você já parou para pensar no motivo de dormir abraçado ao travesseiro? Esse hábito comum…

4 dias ago

Filme da Netflix retrata a luta de uma mãe e vai te emocionar com uma dose de esperança

O cinema consegue traduzir sentimentos e vivências que, muitas vezes, vão além das palavras. No…

4 dias ago