André J. Gomes

Donos da verdade são tão distraídos! Mal percebem não passar de uma mentira.

Imagem de capa: Ollyy, Shutterstock

Gente que comprou a verdade das coisas é muito, muito chata. Exibe premissas onipotentes, postulados irrevogáveis, certezas inquebrantáveis e outros dogmas como melancias penduradas no pescoço. Despreza qualquer dúvida, desdenha de impressões diferentes das suas e segue a vida agarrada a uma razão falsa e ilusória. Tomada de soberba e afetação, celebra seu poder imbatível mirando os outros em plano superior. Quanto engano! Sua única habilidade é matar seus interlocutores de tédio.

Rasteiros, vingativos e rancorosos, os proprietários da verdade absoluta são criadores de caso, pecuaristas de picuinhas, fazendeiros de asneiras. Desconhecem argumentos e dominam nenhum outro ofício tão bem quanto manejam a arte do grito. Tapam os ouvidos para raciocínios contrários, repetem as mesmas coisas que seus interlocutores já tinham dito, no entanto com outras palavras ou entonações. Só para estarem “certos”. Jamais se dão ao trabalho de ouvir. Não escutam nada além do som da própria voz.

Quando ficam em silêncio enquanto o outro fala, é só para tomar fôlego e devolver frases feitas, velhas máximas que confirmem sua vitória esquizofrênica sobre o resto do mundo. Refletir, ponderar para quê? As certezas e as verdades já estão ali, prontas, à mão, decoradas, na ponta da língua.

Faça um teste. Cogite a possibilidade de contar por aí que uma história amorosa importante na sua vida acabou. Simplesmente chegou ao fim. Porque acontece, não? De vez em quando, amor verdadeiro também acaba. Isso já se deu comigo e com a quase totalidade das pessoas que eu conheço.

Aí vem um portador da sabedoria divina e decreta peremptório, o dedo em riste, a jugular saltada:

– Amor de verdade não acaba.

– Ah, não? E se acabar?

– Se acabar é porque não era amor.

– Ah, tá. Então… se o meu casamento chegou ao fim, não importa o motivo, quer dizer que eu não tinha amor por minha ex-esposa?

– Exato. Se acabou é porque nunca houve amor.

– Sei. É sempre assim?

– Sempre.

– E como é que você pode saber?

– Amor de verdade não acaba.

– Mas você nem me conhece para saber se o meu amor, aquele que acabou, não era verdadeiro!

– Não interessa. Se acabou é porque não era amor.

Uma, duas, três horas depois, se você permitir, a conversa entra em estado de looping. Vai se estender até só Deus sabe quando. Se você der trela, o proprietário da verdade por usucapião será capaz de virar dias e noites repetindo análises prontas e certezas acabadas, montado em sua pose de vencedor da peleja. Donos da verdade são muito, mas muito chatos.

E assim o são com todos os temas. Política, economia, violência urbana, novela das nove, a alta do dólar, a safra do caqui, o rabo da lagartixa. Tudo. O dono da verdade sabe de tudo, tem sempre uma opinião pronta e calcificada. Ele manda em qualquer conversa. Aproxime-se e ele range os dentes. Rosna. Não adianta discutir. Para não se aborrecer, melhor evitar questões polêmicas. Ser de esquerda ou ser de direita? É prudente mudar de assunto. Defender a diversidade sexual? Ihh… vai cutucar um vespeiro. Concorda com a diminuição da maioridade penal ou “vai proteger bandido”? Pense bem se quer mesmo dizer o que pensa a um senhor da razão.

É triste. Mas se você não deseja se chatear, afaste-se de certas teclas. E nunca, jamais, em hipótese nenhuma, ouse tocar em assuntos inflamados como “o feminismo”. Vai abrir uma caixa de pandora e libertar um milhão de demônios raivosos, voando na sua garganta enquanto berram conclusões-padrão e certezas irredutíveis. Mesmo que você defenda radical e fanaticamente a igualdade entre homens e mulheres.

Um bate-boca estéril vai alçar um voo rasteiro por dias e noites, meses e anos, séculos e milênios sem fim, esvoaçando em terreno baixo, arando terra improdutiva.

Ahh… verdade absoluta. Seu nome é Mentira da Silva!

Perdoem-me os arrendatários do supremo juízo, mas expressar posições, posicionar-se assim ou assado perante a vida é uma coisa. Outra é brandir certezas sob a forma de espadas de plástico, os olhos fechados, os ouvidos tapados, e atacar, partir para cima, ganhar a peleja a qualquer custo. Pergunto: será que dá para resolver essa história com mais leveza e aceitar que todos temos o direito de pensar diferente?

Cá pra nós, eu tenho a impressão de que essa gritaria toda, essas bandeiras de pano espesso cobrindo nossos olhos talvez estejam a nos impedir de ver o óbvio: donos da verdade são nada além de escravos de uma boa, grande e velha mentira.

André J. Gomes

Jornalista de formação, publicitário de ofício, professor por desafio e escritor por amor à causa.

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André J. Gomes

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