Imagem de capa: GaudiLab, Shutterstock

Quando cheguei ao café já lá estavas. Não me sentiste chegar. Tinhas os olhos presos no telemóvel – como, aliás, fazes sempre que te queres desconectar de ti e te queres conectar com o mundo. Levantaste a cabeça quando te apercebeste que, afinal, o mundo também acontece do lado de fora do visor do telefone. Sorriste. Não sorriste com os lábios. Sorriste com o olhar. Curioso! Sempre conseguimos comunicar muito melhor com o olhar do que com as palavras. Naquela noite não foi diferente. Os nossos olhos, mais uma vez, anteciparam-se às palavras. Não foi preciso dizer nada, pois não?

Alias, nunca é preciso dizer nada. Se há pessoas com quais não é preciso dizer nada, tu, seguramente, és uma delas. Mesmo que o quiséssemos fazer, não tínhamos qualquer poder de decisão. Há pessoas com as quais não somos nós quem decidimos. É o corpo. É o corpo que decide por nós. Que fala por nós. É o corpo que nos denuncia. Há pessoas que não nos dão tempo para gostar. Não há tempo. Há pessoas que não nos deixam perceber se o que estamos a sentir por dentro é isso que chamam de gostar. Há pessoas que têm o condão de nos fazer arrepiar a pele sem nos tocar; de nos fazer despir sem nos tirar as roupas e de nos fazer entregar sem sequer nos possuir. Há pessoas com as quais fazemos amor sem que os corpos se toquem. Há pessoas com as quais perdemos as maneiras. As regras. Há pessoas com as quais não conseguimos ser sensatas. Há pessoas com as quais não queremos ser sensatas. Aproximei-me para te beijar o rosto – como é, alias, nosso hábito. Aproveito para respirar, sofregamente, o cheiro da tua pele. Tento, a todo o custo, perpetuar estes escassos segundos para me alimentar do teu toque. Sinto-te a barba de três dias a picar-me o rosto e consigo imaginar – sem qualquer tipo de esforço – a textura da tua pele a percorrer-me o corpo – sedento de desejo. De rostos colados, encho-me da coragem que nunca tive e sussurro-te ao ouvido: – Vamos fugir daqui. Tenho urgência em ti. Há pessoas com as quais não há porquês. Não há tempo para isso. Há pessoas com as quais não há dúvidas e muito menos incertezas. Há pessoas com as quais não há depois. Há pessoas que não devíamos deixar para depois. Não te desarmaste. Nem tão pouco me quiseste desarmar. Sem nos atropelarmos com palavras vazias deixámos os nossos corpos ditarem as regras, naquela noite. As nossas regras. Imaginámos isto desde o primeiro dia em que nos conhecemos. Desejámos isto desde o primeiro dia em que não nos tivemos. Quisemos isto com a mesma urgência de quem se tem pela última vez. Com a mesma urgência duma última vez sem sequer ter existido a primeira.

Abandonámos aquele local como quem deixa para trás as incertezas; como quem abandona as dúvidas. Com desprezo. Com indiferença. Já não existiam dúvidas, nem tão pouco incertezas. Existíamos nós. E existia também uma coragem avassaladora de sentir. Tínhamos urgência em sentir. Tínhamos urgência em sentirmo-nos. Seguimos de carro ao longo da marginal. Permanecemos calados. Continuávamos a não precisar de palavras. Quando a estrada permitia fugíamos para dentro dos olhos um do outro como quem quer confirmar o caminho; como quem quer ter a certeza de que não está a fazer aquela viagem sozinho. E não estávamos. Cortámos para a primeira praia que conseguimos. A lua estava cheia. Cheia de luz, cheia de vida, cheia de nós.

Compassadamente, alcançámos a areia. Sem pressa. Já não havia pressa. Já tínhamos alcançado o mais importante. A [nossa] paz. A areia estava fria. Pude senti-la debaixo dos pés a fazer-me cócegas entre os dedos. Destemidamente, descalcei-me. Sentia-me livre. E ninguém pode ser livre, plenamente, ficando calçada. Era uma noite feliz. Os astros tinham-se vestido com as estrelas mais brilhantes que tinham guardado, propositadamente, para aquela ocasião. A lua…. Oh, a lua! A lua estava cheia, pois então! Fazia-se refletir na água, orgulhosamente, como quem mostra, pela primeira vez, as suas vestes novas. Estava cheia. Cheia de orgulho em nós. Comtemplei-a mais uma vez. Como tantas vezes o fizera enquanto imaginava aquele momento. Já junto ao mar, deixei que as pequenas ondas – meio adormecidas pelo adiantar da hora – me cobrissem os pés. Sem me dares tempo para que o corpo arrefecesse, elevaste as tuas mãos ao nível dos meus ombros e, delicadamente, afastaste-me as alças do vestido – que já, há muito, desejava abandonar o meu corpo. Sem pudor e sem roupas fiquei apenas vestida com a urgência que me percorria a pele. A urgência em desenhar-te o corpo de querer. A urgência de ser feita de sentir do teu sentir. Ias dizer qualquer coisa quando, a tempo, coloquei o dedo à frente dos teus lábios. – Hoje, são os corpos que falam. Estão calados há tempo demais. E pude ver-te, novamente, a sorrir. Sorriste para mim. Não com os lábios. Sorriste-me com o olhar. E, sem deixares de olhar para dentro de mim, mostraste-me as mais belas palavras de amor quando, suavemente, deixaste os teus lábios se fundirem com os meus. Invadiste-me o corpo com a alma. E, ali, ficámos a obedecer à urgência dos corpos que tanto tinham para falar. Que tanto tinham para dizer um ao outro. Que tanto tinham para gritar, para odiar por tanto se amarem e para se amaram por não se conseguirem odiar. Não se ouviu uma única palavra. Mais uma noite em que os corpos falaram em silêncio. Mais uma noite em que, em silêncio, se amaram. Quando regressei daqueles escassos segundos, ainda pude sentir a barba de três dias a picar-me o rosto. Depositei-te dois beijos na face – como, aliás, era nosso hábito – e disse: – Olá, boa-noite, tudo bem? Talvez existam pessoas que têm o condão de nos fazer arrepiar a pele sem nos tocar. Talvez existam pessoas que nos fazem despir sem nos tirarem as roupas e talvez existam pessoas que nos fazem entregar sem sequer nos possuir. Porque há pessoas com as quais fazemos amor sem que os corpos se toquem. Talvez porque há corpos que falam. Talvez porque há palavras que por muito mais que se digam, nunca hão-de conseguir acompanhar os corpos.

Júlia Domingues

Júlia Domingues. 39 anos. Jurista de formação, criativa por paixão. Sou feita de gargalhada estridente talvez porque acredite que, estridente deva ser a nossa existência. Não para os outros. Para nós. Estamos começados mas não estamos acabados. E , no fim; no regresso a nós, que consigamos, serenamente, dizer: «Ousei viver!». Sou feita de sentir e o que não me cabe no peito, transpiro-o nas palavras e no desenho. Sou mulher e sou feliz.

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